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✉️ #301: Enem, estacionamento e erva-mate

Parêntese #301

Sinais dos tempos. Quando a gente é criança não percebe as mudanças, porque tudo é mudança, talvez. Ou porque a gente consegue focar apenas em elementos muitos próximos – a próxima refeição, o tema de casa para amanhã, a briga com o pai, o joguinho logo mais. Aí o tempo passa e a gente vai conseguindo ver, ouvir, cheirar, intuir num horizonte mais amplo. 

Dado divulgado esses dias: no ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio, o grande funil para ingresso em vagas de cursos superiores, em escala nacional) de 2016, uma mísera década atrás, se inscreveram 9 milhões de candidatos; para o exame deste ano, 2025, metade disso, 4,6 milhões. Como assim?

Assim: tem menos jovens porque a população está envelhecendo, e isso pode estar entre as causas imediatas. Mas tem outra menos nítida. Muitos e muitos jovens não veem mais a universidade como um caminho relevante. Antes jovens pobres não chegaram nem a cogitar ingressar em universidade, muito menos pública; mas a revolução silenciosa na educação brasileira, que pode ser datada desde FHC e o ministro Paulo Renato de Sousa, e que ao longo dos governos Lula e Dilma, com, entre outros, os ministros Tarso Genro e Fernando Haddad, foi amplamente incentivada: abriu caminho para pobres e periféricos, estudantes de escola pública, negros, pardos e indígenas, com cotas e financiamento. 

Agora, parece que batemos em algum teto antes invisível. 

Em outra escala: falou-se esta semana sobre a crise de estacionamentos, por falta de demanda. Tem menos carros buscando vagas em lugares de grande movimento. Por quê? Muito Uber no processo de deslocamento (o Uber brotou em 2010, na Califórnia, e em Porto Alegre tem uma década de vida, começando a 19 de novembro de 2015) e menos jovens interessados em ter carro.

Até dez anos atrás, não consigo lembrar de um jovem que não quisesse ter um carro. Desde que o carro ficou acessível para classe média, duas gerações antes, ao menos.

E a erva-mate: circularam notícias de falência de uma tradicional produtora da erva nossa de cada dia. Por quê? Uma explicação foi a escassez de matéria-prima: donos de terra estão preferindo plantar soja a manter seus ervais. Mas há outro fator: teria diminuído o consumo de erva para fazer chimarrão em função de termos abandonado o hábito de compartilhar a beberagem. O motivo, a pandemia, que nos obrigou a pensar em transmissão de vírus de um modo jamais concebido nesta parte do planeta, a Ilexlândia – palavra inventada pelo Jorge Drexler para designar o mundo que toma mate ou tererê, extraídos da Ilex paraguaiensis

Sinais que figuram no horizonte que nos cabe viver. 

Luís Augusto Fischer


Nesta edição

Estreias são sempre bem-vindas por aqui, e a edição deste sábado aterrissa com um novo folhetim, após o encerramento da saga contada por Stela Rates até a comemorativa Parêntese #300. Cristiano Fretta publica, em dez capítulos, Diário da guerra do sono. Na primeira parte, o autor revela um pouco da força do enredo que vamos acompanhar nos próximos sábados. Aliás, Luís Augusto Fischer conversou com Fretta a respeito do trabalho. 

Outra boa história aparece na crônica de Vitor Necchi, sobre um menino e um ferro-velho, motivo de nostalgia agora que ele é adulto. Álvaro Magalhães, Fischer e Arthur de Faria escrevem sobre Lô Borges, que faleceu no dia 2 de novembro. 

Como as narrativas são também visuais, compartilhamos fotos de Humberto Cavalcanti. O material é definido como candid photography por captar momentos espontâneos do cotidiano porto-alegrense. Não fosse o clique, a maioria deles passaria despercebido pelo olhar apressado e desatento. 

Em defesa da soberania audiovisual brasileira, Luiz Alberto Cassol critica um projeto de lei em tramitação que distorce e fragiliza o ecossistema das produções independentes no país. 

Do mundo dos livros, Helena Terra fala sobre sua relação com o escritor brasileiro Raduan Nassar, que completa 90 anos este mês. O universo do qual parte nossa colaboradora é um dos espaços que necessitam de ambiente adequado para a aprendizagem, tema foco do artigo de Gustavo Borba e Isa Mara Alves

Nos nossos últimos textos, Arnoldo Doberstein aborda ofensivas bélicas direcionadas à Porto Alegre em 1892-93, e Juremir Machado da Silva comenta o livro de um advogado que tenta provar a inocência de Monteiro Lobato perante argumentos de racismo. 

Fiquem abrigados da chuva e boas leituras!