Conheço o Cristiano Fretta desde que nos cruzamos nas salas de aulas e corredores do Instituto de Letras da UFRGS. Faz já um tempo largo, duas décadas, tempo em que ele se formou, desenvolveu carreira como professor de literatura e escreveu e publicou livros. Na Parêntese ele também andou desfilando sua verve, seu universo mental, seu gosto pela história da cidade.
A partir de sábado ele comenda o espetáculo do folhetim, em dez capítulos, sucedendo a história contada pela Stela Rates até o número 300. Agora, entra em cena um sujeito novo, estranho como poucos outros e ao mesmo tempo com aspecto de vizinho de prédio de qualquer um de nós.
"A guerra do sono" vai falar, naturalmente de sono. O leitor deve esperar uma reflexão sobre o sono, o sonho, as agruras da insônia, ou nada disso?
Sim, sem dúvida o sono (ou a falta dele) vai ter papel fundamental na constituição da narrativa. Eu o entendo – e tento explorar isso ao longo do texto – a madrugada como um ambiente de potencial construção de universos oníricos permeados por pequenas incursões ao subconsciente, à memória e, claro, à fantasia. A ideia de não se conseguir dormir é bastante transgressiva do ponto de vista da constituição da personalidade do protagonista, que é um homem imediatista e controlador.
A história transcorre num passado já distante para o nosso momento, aqui em 2025. É coisa de uma outra Porto Alegre. Por que essa escolha? Teve pesquisa documental para produzir a narrativa?
Apesar de ouvirmos a voz bem idosa do protagonista em algum momento contemporâneo, é no final dos anos 60 que a narrativa se engendra – e é claro que isso não é arbitrário, conforme o leitor perceberá. Sim, houve pesquisa documental. No entanto, sempre deixo as coisas fluírem com certa naturalidade, sem a preocupação de ser excessivamente didático quanto a alguma época passada, sob o risco de a voz do autor emergir como que a dizer: “Vejam só como era Porto Alegre nos anos 60”. Penso que essa cidade tem que ser mostrada de forma natural conforme o cotidiano dos protagonistas assim for pedindo, e não com muita insistência em se constituir uma plasticidade que pode se mostrar artificiosa. Em resumo, sem descrições exageradas de outros tempos. Acredito que quando o personagem, por exemplo, anda de bonde, isso já é suficiente para que o leitor constitua em sua subjetividade a identificação de que época era aquela e, portanto, não seja necessário descrever todos os nomes dos comércios, a não ser que o personagem tenha envolvimento com eles.
Conta um pouco a tua trajetória – a geográfica, na superfície de Porto Alegre, mas também a profissional, desde a tua formação até o presente.
Eu nasci em 1987, em Porto Alegre. Vim de uma família pobre, tanto por parte de pai quanto de mãe. Meus antepassados são uma mistureba de etnias de diferentes lugares do mundo. Minha avó materna, por exemplo, era argentina e se casou com meu avô, que era polonês e também seu primo. Difícil explicar em poucas linhas. Mas há, obviamente, como meu sobrenome denuncia, os italianos, além de turcos, judeus e até mesmo russos. Mas eu sou porto-alegrense mesmo, da zona norte da cidade, mais especificamente do bairro São João, local que abriga as melhores lembranças da minha vida e sobre o qual também pesquiso, embora não com a intensidade que gostaria. O único privilégio que tive até minha adolescência (além, claro, de ser um homem branco e não ter, por exemplo, medo de abuso sexual ou violência policial nas madrugadas pela zona norte) foi ter estudado em escola privada. Até hoje não entendo direito como é que pagavam a mensalidade. Meu pai foi um homem muito trabalhador que fez inúmeros empreendimentos em sua vida. A maioria deles eram bem quixotescos e obviamente não aliviavam a nossa penúria. Fui aprovado no vestibular de Letras em 2007 e, desde então, minha vida mudou em vários sentidos. Sempre fui um leitor voraz, alguém que fugia com orgulho para dentro dos livros quando o mundo em volta parecia ser pouco mais do que tensão, ansiedade e morte de parentes. Me graduei, fiz mestrado e trabalho há 18 anos em escolas particulares e cursinhos. Tenho um montão de história para contar. Quem sabe um dia eu não me animo. Sempre trouxe também a paixão pela música. Já compus dezenas de canções e tenho um disco lançado. Infelizmente a rotina não me deixa muito tempo (minha psicóloga diz que é insegurança, pode ser) para a música. Já toquei na noite e em casamentos. Atualmente sou divorciado e tenho uma filha de 5 anos, a Teodora, que é a razão da minha vida. Todo o resto perde significância perto dela. Moro no Bom Fim e não penso em sair de Porto Alegre, pois, para o bem e para o mal, aqui é o meu chão. E, por último, sou viciado em caminhada. Meus autores preferidos: Machado de Assis, Drummond, Guimarães Rosa, Thomas Mann, James Joyce, Pessoa e mais uns 30.
Que outros livros tu publicaste já? Tem crônica, romance e o que mais?
Em 2015 publiquei pela Multifoco um romance chamado Chão de Areia. Nunca mais tive coragem de lê-lo. Embora saiba que eu tenha pego pesado em alguns aspectos mais formais, reconheço que, para um primeiro livro, foi um projeto bem acabado. Em 2017, pela mesma editora, saiu o Tortos Caminhos, reunião de três novelas que discorrem sobre o universo da normalidade e da loucura. Em 2022, pela Bestiário, publiquei Crônica de um mundo ausente. O livro é uma reunião de várias crônicas que publiquei ao longo dos anos em veículos de comunicação, como o Jornal do Comércio, a revista Parêntese e Jornal Extraclasse, entre outros. Com ele, ganhei o prêmio livro do ano da AGES 2023 – categoria crônica – e fui finalista do Açorianos. Há pessoas que desdenham de prêmios. Eu não. Tenho um orgulho danado desse livrinho. No ano seguinte, 2023, saiu meu maior livro em números de páginas (475). Chama-se Correr na Chuva e foi publicado pela Patuá. Sem dúvida foi a obra que mais me deu trabalho e, ao mesmo tempo, retornos positivos dos leitores. Neste ano de 2025 publiquei Memória da Casa dos Vivos, pela Boaventura Editora, dentro da coleção novelas porto-alegrenses. Fora isso, tenho um livro de contos pronto, esperando pela minha revisão, e inúmeros projetos rascunhados. Escrever dá sentido à minha vida.
A tua novela vai gerar suspense? Vamos ter surpresas? Ou o Major Orquídea vai aparecer sempre do mesmo jeito?
Sinceramente, acredito muito na força de um bom enredo. Não há demérito nenhum em um livro contar uma excelente história, dessas que pega o leitor do início ao fim. Não se trata de “entretenimento” (e se fosse, qual o problema?). Acredito muito que a narrativa seja a forma de ordenamento do real, como defendia Paul Ricoeur. Em nenhum dos meus livros abri mão de fazer um enredo que eu julgasse minimamente interessante para o leitor. Em relação à Diário da Guerra do Sono, sim, vamos ter suspense e muita surpresa. Bastante coisa vai ocorrer de um capítulo para o outro, de forma a relacionar diversos aspectos que já foram sugeridos nos primeiros capítulos. Antes de tudo, quero que meu texto seja uma boa história.
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