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(295 Dopinho: uma memória à venda
Foto: Maíra Brum Rieck

Como se constrói uma cidade? A memória de uma cidade, o que a constitui? Pertencemos a ela? A memória, a cidade, elas nos pertencem? Quais recordações, folclores, mitos, histórias, narrativas constituem uma cidade, um país, um povo? E como lidamos com isso? Se formos mais específicos: sobre a cidade de Porto Alegre, o que a tem constituído historicamente? Como tem se transformado? Tem se tornado o quê? E seus cidadãos, como se relacionam com ela? Qual sua História Oficial? Quais as histórias subterrâneas da nossa cidade? Aquelas que circulam nas bocas dos pequenos círculos, clubes, famílias, bolhas, mas que não chegam a constituir uma narrativa oficial. Conhecemos a nossa cidade?

Tais reflexões iniciais sugerem algo que os estudiosos e as estudiosas do tema da memória e das cidades já vêm apontando há tempos: que a memória e também as cidades, seus passados e futuros, estão em disputa, sempre estiveram. Tais disputas (temporais, políticas, historiográficas e culturais), por um lado, levam-nos à lógica dos significados e dos monumentos agregada às ideias de duração, de estabilidade e mesmo de nação; por outro lado, dirigem-nos também às memórias subterrâneas, encapsuladas pelos poderes vigentes, que nem sempre correm em silêncio pelo rio da história, e que normalmente afloram nos momentos de sobressaltos, crises e urgências, ganhando corpo no corpo do espaço público, com múltiplas reivindicações, nem sempre previsíveis. É nesse sentido que Michael Pollak apontava para a “sobrevivência durante dezenas de anos, de lembranças traumatizantes, lembranças que esperam o momento propício para serem expressas”.

São muitas as memórias que correm nas ruas da nossa cidade, muitas delas apagadas, amordaçadas, esquecidas. Um desavisado pode passar pela rua Santo Antônio nº 600 em Porto Alegre e nem imaginar todos os horrores que ali se passaram durante a ditadura civil-empresarial militar imposta a partir de 1964. Torturas, assassinatos, estupros. Parece filme de terror. Mas não é filme. Poderíamos pensar que um serial killer como o dos filmes estadunidenses morou ali. Não, não foi isso. Foram agentes do Estado que cometeram tais atrocidades. Mas não um Estado democrático, uma ditadura. A casa foi alugada por militares neste período terrível de nossa história. Foi usada clandestinamente como laboratório de centro de tortura, sendo chamada de Dopinho/Dopinha, em alusão ao DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), que atuava na repressão naqueles anos de “chumbo”.

Um olhar mais atento poderia ver as marcas da disputa por memória, nas pichações que a cidade faz em seus muros e que, frequentemente são desfeitas pelos proprietários, com novas pinturas — “O que é uma marca de tinta feita numa parede banhada de sangue?”; “A memória, a verdade, justiça, exige coragem”; “Não à anistia”. A casa elegante de um bairro central da cidade seguidamente pichada revela a tentativa desesperada dos cidadãos de fazer memória. Há aí um quê de angústia por não se encontrar uma escuta. Vândalos? A frase volta: “O que é uma marca de tinta em uma parede banhada de sangue?”. Então, nos perguntamos, quem são os vândalos da (H)história?

Estamos a questionar o pacto que se criou entre o silêncio dos torturadores e os locais que foram utilizados como centros de tortura, pacto este que mantém um hiato em nossa história sobre os tempos sombrios da violência de Estado. Ao mesmo tempo, estamos a evidenciar o que ainda grita no exato endereço supracitado, o que ali ainda pulsa e que, portanto, clama, apela para um trabalho psicanalítico e político possível frente à aparência ordinária do passado, frente à naturalização e ao silenciamento do que foi, ressaltando as feridas, as tensões e as contradições que exigem elaborações coletivas públicas. Mas quantos outros endereços de tortura ainda estamos por encontrar, apontar e mapear em Porto Alegre?

O contraponto deste pacto é a criação de uma política de Estado para nomear e transformar locais de detenção e tortura em centros de Memória. Recuperar a(s) H(h)istória(s), transformar o silêncio em conhecimento do ocorrido nos tempos da ditadura, trazer as memórias subterrâneas da cidade e colocá-las à luz do dia. A psicanálise nos ensina que é a inscrição da memória que nos possibilita a não-repetição dos traumas e horrores vividos. É ela, a memória, que nos possibilita um laço civilizatório que não mata, não tortura, não estupra e não desaparece corpos. Lembrando que, no Brasil, temos enfrentado diversas formas de sonegação de informações históricas, de produção de desconhecimento dos fatos e amplos processos de desmemória. Segundo a pesquisadora Deborah Neves, inclusive no âmbito do tratamento do patrimônio histórico e cultural, “a prática do exercício do esquecimento é constante”.

Assim sendo, no dia 13 de setembro deste ano, na Conferência Livre de Direitos Humanos Ditadura Nunca Mais — que ocorreu na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul —, propusemos uma carta abaixo-assinado requerendo a compra desta casa (que se encontra à venda) pelo poder público, atendendo à necessidade de construção de um Centro de Memória da ditadura civil-empresarial militar brasileira em Porto Alegre. Dentre os diversos temas debatidos na conferência, esta foi uma das proposições aprovadas por unanimidade, ao lado de outra, não menos importante: a reedição de um projeto de reparação psíquica para afetados pela violência da ditadura de 1964 (o projeto Clínicas do Testemunho), extinto pelo golpe de 2016 que colocou Temer na presidência da república.

Foi a experiência acumulada no trabalho do projeto Clínicas do Testemunho, pelas duas entidades psicanalíticas que o executaram em Porto Alegre — a Sigmund Freud Associação Psicanalítica e a APPOA  (Associação Psicanalítica de Porto Alegre) — que nos permitiu testemunhar a singularidade de cada sofrimento padecido, articulada à coletividade do acontecido, bem como nos permitiu testemunhar a importância do Estado em reconhecer lugares físicos e em oferecer informações de acesso à verdade que apresentem significado simbólico para a sociedade.

A experiência internacional reforça os efeitos psíquicos e pedagógicos que os Centros de Memória oferecem à população, ao possibilitarem a compreensão dos acontecimentos e dos mecanismos que perfazem a história de uma sociedade. Há um poder irradiador de políticas de direitos humanos e de importante vigilância da democracia na propagação e construção de memórias coletivas, cujos efeitos vão em direção à transmissão e articulação de horizontes de futuro e de passado para novas gerações.

Lembremos que o Dopinho foi escolhido pelos militares brasileiros para ser um centro de tortura em função de sua posição estratégica, devido à sua posição geográfica “fronteiriça” na América Latina, por esta razão, tornou-se o primeiro local clandestino de tortura do Brasil. Se subvertermos a lógica militar, a mesma razão pode ser reiterada para que a casa que abrigou o Dopinho se transforme em Centro de Memória da ditadura civil-empresarial-militar brasileira, uma vez que a capital faz “fronteira” com os mesmos países que realizaram a operação CONDOR, idealizada desde o norte da América. Temos a chance de ressignificarr o Dopinho como lugar de memória, como uma aposta de elaboração coletiva do passado em direção à não repetição de atos de violação dos direitos humanos, e não mais apenas como lembrança urbana e arquitetônica do terrorismo de Estado. O Dopinho pode vir a ser ressignificado como uma política de memória comprometida com a verdade. E os sujeitos nela implicados podem ali guardar, expor e alcançar a outrem os horrores vividos na casa da rua Santo Antônio, ao tornarmos esta o Centro de Memória que desejamos, deslocando-se da posição que ocupa hoje frequentemente em pesadelos, em pensamentos intrusivos e medos que nunca vão embora.

A memória impõe o conhecimento do passado e de um pacto de Nunca Mais. A reconstrução da História do Dopinho exige uma ética da memória, ancorada no conhecimento dos fatos e na esperança do futuro em comum. Trata-se de um verdadeiro dever de memória. Um Dopinho sem falsas fachadas. Neste local atroz, “o trabalho da memória é portanto vital”, conforme nos ensina Zilá Bernd, a saber, um trabalho que “está tão associado à vida dos indivíduos em sociedade, que se torna nuclear na vida comunitária, determinando a constituição da subjetividade”. E, para além dos que ali pereceram, a continuidade da política do esquecimento que impera em nossa cidade, que faz reviver os horrores ali vividos no tempo presente e não somente no passado, nos interrogamos outra vez: o que sente alguém que ali foi torturado, violado, estuprado quando passa na frente desta casa situada no coração do bairro Bom Fim de nossa cidade?

Por isso lutamos: transformar um lugar de tortura em um Centro de Memória. Tornar pública e conhecida a história de Porto Alegre. Ressignificar o horror de forma que outros não precisem viver no futuro o que já foi vivido no passado. Reivindicamos, assim, um trabalho de memória coletivo indissociável da organização da vida na cidade, cuja participação efetive sem equívocos sua dimensão pública.

E é nesse sentido que convidamos a tod(os/as/es) para acessarem o abaixo-assinado divulgado pelo seguinte link: https://shre.ink/S5J0. Convidamos também a comparecerem na Audiência Pública que ocorrerá dia 06/10 às 18h e que tem como finalidade debater justamente os caminhos e descaminhos do silenciamento em direção ao conhecimento dos fatos, junto à Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Porto Alegre.

Cientes de que a memória social depende de gestos éticos e políticos, cujos reflexos anunciam o futuro possível, e de que os lugares de memória são fundamentais para a construção do futuro, até o presente momento 28 entidades subscreveram a pauta do Manifesto Público iniciada pelo Instituto Sig – Psicanálise & Política, tornada reivindicação da sociedade civil desde a Conferência Livre de Direitos Humanos e que, sublinhamos, vem percorrendo já um longo caminho desde a sua reivindicação inicial, em 2011, feita pelo Comitê Carlos de Ré.

As opiniões emitidas pelos autores não expressam necessariamente a posição editorial da Matinal.

Maíra Brum Rieck

Psicanalista (Instituto APPOA/Museu das Memórias (In)Possíveis/Coletivo Testemunho e Ação)

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