Ver novela de televisão aberta é cafona. A palavra cafona só tem uso ainda para situações tão bregas que não podem ser cobertas pela palavra kitsch. O sertanejo, por exemplo, foi cafona quando brega significava kitsch em português e lia-se Umberto Eco em saguão de aeroporto. Hoje, sertanejo é tendência, rock é coisa de velho e novela da Globo tem gosto de remake. Como não existe cafonice que não possa ser tendência ao sul do Equador, a novela das nove, Vale Tudo, um remake sem compromisso com “vale a pena ver de novo”, fatura bilhões em publicidade e pega telespectador.
Odete Roitman foi assassinada numa suíte do Copacabana Palace.
O quem matou está de volta com tudo. Vale conferir nas bets.
Três situações de apresentam: quem tinha motivos para matar, quem se apresentou para executar o ato e quem a autora escolheu como assassino.
Talvez a melhor pista para resolver o enigma seja ler ou reler o célebre romance de Agatha Christie, O assassinato no Expressão Oriente.
Primeiro grupo: Heleninha, filha de Odete, e Celina, irmã de Odete. Celina queria matar para se vingar das humilhações que sofreu ao longo da vida. Heleninha tinha motivos de sobra e estava no hotel do crime, mas inicialmente não foi incluída entre os suspeitos de arma no bolso ou bolsa.
Segundo grupo: Marco Aurélio, executivo da empresa de Odete, e Cesar, malandro casado com a vítima. Marco Aurélio quer matar por medo de ser morto. Ele e Odete já tentaram se livrar um do outro e falharam. Cesar sabe que se Odete morrer ele ficará rico. A loba, depois de devorar lobos maus aos magotes, se apaixonou por um lobinho e cometeu um erro fatal: colocá-lo no testamento. O olho do rapaz cresceu imediatamente. Os maus modos idem.
Terceiro grupo: Maria de Fátima, a influenciadora alpinista que detém um segredo mortal: sabe que Odete matou Ana Clara e sabe que Odete, sabedora disso, não a deixará viva para continuar a chantageá-la ou contar a história. Quer matar, digamos, em legítima defesa antecipada.
A história já não é sobre quem tem motivos, mas sobre quem chegou primeiro para ser o autor do crime. Conforme as cenas apresentadas ao telespectador, vemos Fátima ser a primeira a bater na porta, mas Heleninha pode ter achado antes. Marco Aurélio, que se hospedou no quarto ao lado com a mulher, é o candidato mais factível: ele foi ao quarto da vítima, voltou e não deu qualquer sinal à mulher, Leila, de não ter realizado o seu intento. Se tivesse encontrado a porta fechada, por Odete já estar morta, teria dito, não? Soltaria um, merda, alguém chegou antes. Seria perfeito para ele: ter a inimiga morta sem precisar ter apertado o gatilho. No mínimo teria de dizer, com preocupação, que a porta não foi aberta.
Nesta altura o leitor diz: “e daí? Não vejo novela”. Eu vejo. Num bom romance policial, como os escritos por Georges Simenon, Raymond Chandler ou Dashiell Hammet, o leitor pode descobrir o assassino a partir dos dados semeados pelo narrador. Faz parte da regra do jogo. Sem isso, é trapaça.
Pesquisas, porém, indicam que a maioria não queria ver Odete morta. Ela foi trambiqueira, preconceituosa, canalha, assassina, mas encantou muita gente, até a autora, Manuela Dias, como mulher empoderada e cínica, fazendo com os homens aquilo que eles costumam fazer com mulheres.
No país dos machos canalhas que se dão bem, o público não achava ruim ter uma mulher canalha se dando bem até o fim. Questão de isonomia.
Alguns queriam que a novela atual repetisse a primeira. Aí era só ver uma reprise. Trata-se de outra novela. Duas interpretações me impressionaram, a de Débora Bloch (Odete) e a de Bela Campos (Fátima) como influencer mimada, egoísta, umbilical, só preocupada com dinheiro e visualizações. Debora esteve soberba. Bela, perfeita. O papel de Taís Araújo, a lutadora Raquel, encolheu com o passar dos capítulos.
As protagonistas eram as duas vilãs, a madura e a novinha, que amavam o mesmo boy e se perderam nos seus golpes por causa dele. Aí não foi legal.
Não sei quem matou Odete, mas quero muito ver que argumentos usará a autora para explicar por que Marco Aurélio, se não foi ele, ficou quieto, como se tivesse cumprido a missão, ao ser questionado pela sua mulher.
Tenho mania de verossimilhança.
Vale Tudo é tão boa, melhor ou absurda quanto boa parte das séries da Netflix.
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