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✉️ Bardot enfrenta o tempo

Newsletter do Juremir #186

✉️ Bardot enfrenta o tempo
Brigitte Bardot e Marcello Mastroianni em Vida Privada, filme de 1962 | Foto: AG (Zürich)

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Bardot enfrenta o tempo

Brigitte Bardot anda doente. Busquei os rastros dela nos meus arquivos. Houve um tempo em que eu a achava a mulher mais bonita do mundo. Nesse tempo, eu não tinha a menor noção do tempo, embora, sendo criança, considerasse que o tempo passava lentamente. Eu não sabia, mas, muito precoce, tinha pressa de envelhecer. Nesse tempo, agora distante, não havia previsão do tempo na televisão. Nem TV lá em casa. 

A informação vinha pelo rádio, vencendo chiados e pilhas fracas. Ou pelo trem, que estava longe de ser bala. Brigitte Bardot chegava em revistas amareladas pelo tempo. Brigitte me fazia perder tempo. Eu esquecia de fazer os temas. Como podia ser tão linda? Estávamos em 1968. Eu tinha seis anos. Ela, 34. Moças diziam que estava acabada.

Assim que aprendi a ler, decifrei um texto numa revista Fato&Fotos, se o tempo não me trai a memória, que falava do filme E Deus criou a mulher, de 1956. A mulher era Bardot. Pela primeira vez entendi as palavras do padre sobre a grandeza da obra divina. Rezei. 

Era um tempo vertiginoso, diziam os mais afoitos. Naquela década, o homem pisaria na lua, as mulheres passariam a usar calças compridas e minissaia. A pílula anticoncepcional diminuía o tamanho das famílias, liberava o sexo da reprodução e abalava casamentos. 

O rock sacudia hierarquias. Hippies assustavam homens provectos. Tudo parecia se acelerar como nunca. O tempo passava. Quem diria que, 57 anos depois, aquele tempo seria visto quase como um tempo morto? Era um tempo bom para mitos. Não se guardavam muitas imagens dos grandes feitos, o que os favorecia e dava-lhes uma aura.

O gol era visto nos estádios, ao vivo, sem replay. Acontecia numa fração de segundos e ficava plasmado nas memórias, imutável por falta de outros ângulos, até se converter, por força dos buracos das lembranças, numa obra hiper-real, mais real do que o real. Com o replay e a câmara lenta, o gol real perdeu a graça. Quem ia ao estádio e via o gol, ficava com a sensação de que faltava algo. Faltava a prótese, a técnica, o replay, o gol hiper-real, mais real do que o real, o gol da televisão, o gol multiplicado. Até que neste novo tempo os estádios começaramm a ter telões. No futuro, iremos a campo para ver o jogo na televisão. Estamos cada vez mais velozes.

Pilotamos carros sempre mais potentes, capazes de andar a mais de 200 km/h. O problema são os engarrafamentos sempre maiores, que transformam máquinas incríveis em carroças paradas por longo tempo.

O tempo da tecnologia fez o mundo encolher. Nossa percepção está afetada. Vemos tudo em tempo real. O tempo de antes era mesmo irreal. Tempo mítico, cheio de falhas, lento, de cadeiras nas calçadas. Achamos que há mais violência agora. É uma ilusão do nosso tempo exagerado. Toda violência nos chega imediatamente graças às novas tecnologias da informação. Outro dia, vi uma imagem de Brigitte Bardot. Meu Deus, o que o tempo fez com ela? Confesso, minha fé sofreu um abalo. Depois, concluí envergonhado: que terrível etarismo o meu.

Gilles Lipovetsky é o pensador do hipermoderno. Ele diz que a modernidade levou a uma nova moralidade extrema. Tudo nela encontra lugar entre a sedução e a publicidade. Na contramão da emancipação, a modernidade temeu o avanço do prazer e da liberdade. Incentivou-o, porém, também o bloqueou.  Inventou uma moral ao gosto do cliente.

Deixou todos livres para escolher. Quando percebeu o caos apontando, fechou-se. Impossível recuar. Acelerar havia conquistado os corações como palavras de ordem definitivas e charmosas.

Esse era o Lipovetsky pós-moderno. Na aceleração do tempo, ele se tornou hipermoderno. O tempo muda nossa relação cotidiana com a vida:

“A obsessão de si, hoje, manifesta-se menos pela febre de prazer e de gozo que pelo medo da doença e da idade, a medicalização da vida. Narciso está menos apaixonado por si mesmo que aterrorizado pela vida cotidiana; seu corpo e o ambiente social parecendo-lhe mais agressivos”. 

Cada um tem a sua nova visão do tempo. 

Jean Baudrillard, que o tempo o tenha na eternidade, percebia o tempo do seu tempo com ironia intemporal:

“Episódio recente: os estudantes, em manifestação, bloqueiam o TGV na estação de Angoulême. O fluxo escoa dos dois lados do trem, ao longo dos passageiros imóveis atrás dos vidros fumés. Alguns gritos, slogans e vociferações - mas contra quem? Era como se latissem para um satélite artificial. Pois com o TGV é a realidade virtual que passa, a realidade virtual que atravessa a França in vitro – encarnação do dinheiro da velocidade de tudo que circula – confrontada ao mundo bem real de desempregados potenciais dos manifestantes”.

Velocidade absoluta. 

Baudrillard, pós-moderno apesar dele mesmo, ecoava Baudelaire, primeiro analista da modernidade: “Odeio o movimento que a linha do tempo descreve”. 

Michel Maffesoli, pós-moderno por afeição, precisaria:

“Acontece de, como é frequente quando se assiste à saturação de determinada civilização, tal uma contaminação viral, essa metamorfose se acelerar brutalmente”.

Aceleração e saturação. O tempo corre. Transfiguração do político, passagem do coletivismo ao individualismo, do individualismo ao tribalismo, da identidade à identificação, do permanente ao efêmero, do namoro ao ficar, da adesão à participação. Mutações.

Edgar Morin, aos 89 anos de idade – hoje ele tem 104 bem vividos –, buscava um tempo complexo:

“A crise começou na filosofia. Mesmo permanecendo pluralista nos seus problemas e concepções, a filosofia dos tempos modernos foi animada por uma dialética que remetia um ao outro a busca de um fundamento seguro para o conhecimento e o perpétuo retorno do espectro da incerteza”. 

Os tempos são outros: já não saímos de casa sem olhar a previsão do tempo. Nem o replay do gol. Voltamos a sonhar com a imortalidade.

Queremos viver muito tempo mesmo temendo o tédio. Numa sociedade em que cuidar do corpo e tentar prolongar artificialmente a vida se tornou um imperativo categórico, dominar o tempo é a obsessão. 

Como disse Bardot

“Eu deixo os anos sem arrependimentos, mas com a inquietação do que me trará o ano seguinte”.