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Dosimetria da vergonha

Continho de fim de ano em um país muito esquisito

Dosimetria da vergonha
Marcianos espantados com a dosimetria, segundo o GPT

Era uma vez um país esquisito onde parte da população, especialmente seus líderes políticos, gastava o seu tempo pedindo endurecimento de penas contra quem praticasse crimes. Nada de saidinhas da prisão em certas datas festivas, evolução rápida de pena para regimes alternativos, cela especial e outros supostos privilégios criados por defensores dos odiados direitos humanos.

Todo dia o chefe dessa turma extremada gritava por qualquer coisa:

– Que apodreça na cadeia!

Foi então que esses mesmos líderes cometeram um dos piores crimes: tentativa de golpe de Estado e de abolição violenta do Estado do Direito.

Imediatamente tudo mudou. Os defensores do endurecimento das penas passaram a pedir anistia para os seus ídolos. Não conseguindo, adotaram outra estratégia: mudar a lei para aliviar os seus heróis das penas a cumprir em prisão fechada. Uma expressão impensável na boca dessas pessoas tornou-se corriqueira em seus discursos: direitos humanos. Soluço virou doença grave e pediu-se que por essa razão o soluçante, ou solicitante, pudesse cumprir pena em sua mansão.

Como se sabe, houve processo legal, direito à defesa, julgamento e condenação pela suprema corte. Nada disso acalmava os insatisfeitos. Crime era o que outros cometiam, não os seus guias iluminados. O mais impressionante foi então a confecção de uma lei prêt-à-porter para esses criminosos: sob medida para tirá-los da cadeia em pouco tempo, livrando-os dos sofrimentos infligidos a outros criminosos. Como era impossível fazer uma lei exclusiva para esses condenados sem atropelar todas as aparências, aprovou-se na Câmara dos Deputados um texto geral capaz de beneficiar, por efeito dominó, corruptos e até praticantes de certos crimes sexuais. O Senado avisou que não havia como corroborar.

Os adeptos de penas impiedosas e longas começaram a dizer que tentativa de golpe de Estado e tentativa de abolição violenta do Estado de Direito eram a mesma coisa, que não podiam somar anos de punição. De quebra, sustentaram também que tentativa não é consumação e que, portanto, as penas deveriam ser mais leves por nada ter acontecido. Mais ou menos como se a descoberta de um plano de assalto a banco na boca do túnel, impedindo a sua execução, resultasse em liberação dos envolvidos por falta de concretização do ato.

Golpe de Estado consumado não se pune. Vira revolução e impõe novas regras a um país. Já a tentativa deve ser punida justamente para que não se consume.

Assim, de um dia para outro, os adeptos das penas duras e sem exceção viraram apoiadores de um plano de exceção para livrar a cara de criminosos condenados com fartura de provas. Como se explica algo tão inverossímil? Bem, os parceiros dos golpistas condenados achavam, no fundo, que tentativa de golpe de Estado não era crime tão grave assim, talvez nem crime, salvo se tentado pela esquerda. Golpe de direita, como assim? Golpe é sempre de esquerda.

Esse era o discurso de alguns. A nação sabia que era fake news, acostumada com tentativas de golpe e golpes da direita, sendo que o de 1964 ainda era chamado por seus adeptos de “revolução redentora”.

Que país bizarro!

A elite empresarial e financeira deixou-se seduzir por um capitão dispensado do exército por tentar um golpe contra seus superiores e o colocou na presidência da república. Foram quatro anos de vexame, culminando com a tentativa de golpe para não devolver o poder depois de derrota em eleições livres e limpas.

Foi nessa época que marcianos visitaram o país. Ninguém conseguiu explicar-lhes a razão de fazer leis de encomenda para livrar golpistas da cadeia quando o certo seria que pagassem por seus crimes. Um marciano até gritou:

– Que apodreçam na cadeia!

As opiniões emitidas por colunistas não expressam necessariamente a posição editorial da Matinal.
Juremir Machado da Silva

Juremir Machado da Silva

Jornalista, escritor e professor de Comunicação Social na PUCRS, publica semanalmente a Newsletter do Juremir, exclusiva para assinantes dos planos Completo e Comunidade. Contato: juremir@matinal.org

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