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O azedo sonho americano

Série "Maid" narra as agruras de uma jovem mãe tentando refazer a vida

O azedo sonho americano

Se você tem a sorte de nascer nos Estados Unidos da América, você cresce ouvindo um mantra que, por força da repetição – como bom mantra – vira verdade absoluta e inolvidável. Você deu a suprema sorte de nascer no maior e melhor país do mundo, revoguem-se todas as disposições em contrário.

Essa verdade não é apenas repetida à exaustão. Ela é afirmada em cada linha e entrelinha da vida americana. Os americanos são o suprassumo da experiência humana sobre a Terra, e antes que alguém duvide, eles apontam pro fato indiscutível de terem um PIB de 30 trilhões de dólares, muitas vezes mais do que todo mundo, fora a China, que pode ter PIB, mas não tem a sorte de ser americana e ainda deu o azar de ser chinesa, tadinha.

Como se riqueza fosse garantia de sabedoria – e aí está o Elon Musk pra desmontar a tese –, os americanos não apenas saem de um berço dourado pra dominar a vida, mas o fazem e passam recibo ao realizarem o Grande Sonho Americano. Pra quem não sabe, o Grande Sonho Americano consiste em nascer, crescer bebendo muito leite, aprender como tudo funciona na high school e dela sair para uma faculdade ou para a vida, onde se espera que cada cidadão atinja o nirvana na forma de comprar um carro, uma casa e mandar os filhos para a universidade.

Sim, estimados leitores. O sonho americano é um dos mais tangíveis já vistos no mundo dos sonhos: um carro, uma casa e um ou dois filhos na universidade.

Como todos esses itens são financiáveis, esse sistema garante que, ao realizar o seu sonho, um americano médio deva mais ou menos um milhão e meio de dólares antes de completar 30 anos. Quem não atinge essa meta, bom, ou não é americano, ou não sabe sonhar, ou caiu em alguma fenda do sistema, escapando por entre os dedos do American Way of Life, condenado a jamais ser premiado com uma visita à Disney, ou outra a Vegas – com a dolorosa etiqueta de loser, perdedor, colada na testa pra ninguém duvidar.

Eu vivi nos Estados Unidos por um largo tempo, estimados leitores. Fiz high school, dois períodos de college e trabalhei por lá em diferentes épocas e funções. Algo em mim impediu que o sonho pegasse no tranco, e cá estamos. O sonho, caros leitores, sofre de uma certa falta de octanagem, especialmente nestes tempos em que a oligarquia deles resolveu cortar o fornecimento de matéria onírica, e muitos e muitos americanos hoje em dia precisam lidar com a dura, duríssima verdade de um estado liberal, puritano, conservador e sem concessões. Fora do sonho, o que existe não é uma realidade, mas uma queda.

Maid, disponível na Netflix, é uma série americana sobre essa queda. Nela, vemos a trajetória de uma jovem mulher, mãe de uma filha de três anos, família pobre e disfuncional, que abandona o marido em uma fuga da violência que ele começa a representar. Vemos a vida fora do sonho, e a dureza insensível que ela representa.

Numa sociedade rica, mas pouco sensível, os mais frágeis pagam duplamente, porque a fragilidade deles é vista como uma fraqueza, e não uma fragilidade. No mundo puritano e cruel – como todo mundo puritano –, quem se dá mal demonstra falta de crença em Deus, ou uma falha de caráter – e não que essa pessoa possa ter encaixado um mau momento na vida, ou que possa haver algo de errado com o sistema. Todas as vidas podem ter momentos em que as coisas simplesmente se alinham de um jeito desfavorável para um ser humano, independentemente do que ele tenha ou não feito.  No mundo puritano, quem se dá mal tem culpa, e os poloneses devem se sentir culpados por terem sido invadidos pela Alemanha, e uma mulher jovem e com uma filhinha sem dinheiro, sem casa, sem família precisa pagar pelos seus pecados antes de receber qualquer apoio.

Na riquíssima sociedade americana – e um estado pobre como o Mississipi tem renda maior do que a do Japão –, ser pobre é uma prova de mau gosto, de inadequação, de falha e, em princípio, merece punição. Para se ter ideia, no país mais rico do mundo, muitos Estados não oferecem alimentação gratuita nas escolas, e os pais que não podem pagar, ou os alunos filhos desses pais, são humilhados publicamente. No melhor país do mundo, não basta ser pobre, é preciso pagar por isso.

A série Maid narra a história dessa mulher, e nos mostra esse lado de um país cruel, e ainda nos traz a dinâmica especial entre a jovem Alex e sua ultra doida mãe de quem ela cuida desde sempre. Pra quem não souber, a mãe de Alex na série é interpretada por Andie MacDowell, que é a mãe da atriz que faz a Alex, Margaret Qualley, na vida real.

Sendo branca, beldade e com uma filhinha de cartão postal, os sofrimentos da Alex são reais, mas se suavizam ao longo do tempo, e ela começa a ter a chance real de se endividar o bastante para poder sonhar o sonho. Se isso vai ocorrer ou não, a séria não conta, mas nem precisa. Alex se salva pela escrita, o que, incrivelmente, acontece mesmo com alguns, de vez em quando, e qualquer hora dessas ela ainda vai aparecer na FLIP.

Muitos brasileiros, especialmente os que jamais saíram do Brasil, descrevem o nosso país como um desastre natural artificialmente construído por políticos corruptos que eles curiosamente não elegeram. Já eu, que experimentei outras coisas, acho o Brasil um lugar onde ao menos ninguém acredita ser o último oásis antes do deserto. Somos mais realistas, e menos injustos. O Brasil é muito, muito mais solidário, e isso, caros leitores, faz a diferença.

Vejam, e achem.

 

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