
O vidente de Etampes
Meu amigo Bertrand Ricard, docente em Reims, na França, tem um olho literário privilegiado. Nos anos 1990, ele me indicou a leitura de certo Michel Houellebecq. Virei o primeiro tradutor do autor de Extensão do domínio da luta e Partículas elementares no Brasil.
Introduzi a literatura de MH entre nós quando a crítica especializada e as editoras que mandam no mercado ainda torciam o nariz para ele por não florear as frases e não barroquizar o texto.
Agora Bertrand me indicou outro autor em ascensão na França: Abel Quentin. Li o seu surpreendente romance O vidente de Etampes.
Etampes é um lugar do interior da França.
O vidente seria um poeta americano negro que, depois de conviver com Jean-Paul Sartre e os existencialistas, em Saint-Germain-des-Prés, na rive gauche parisiense, retira-se para uma vida monástica e passa a escrever poemas inesperados na mais pura tradição medieval francesa.
O narrador da história é um professor de história, recém-aposentado da Universidade Paris VIII, a mais vanguardista da França, especialista em Guerra Fria, que se apaixona pela poesia do norte-americano e principalmente pela sua capacidade de se retirar do mundo.
Depois de cem páginas, mandei mensagem a Bertrand: “É um novo Michel Houellebecq”. Ele respondeu com um dedão fazendo positivo.
Acontece que o narrador não percebeu que precisava enfatizar a negritude do poeta ao qual dedicou o livro da sua jovem aposentadoria.
Mesmo que diga na obra mais de uma vez que o seu Robert Willow era negro, realça muito o seu comunismo e a estética da sua poesia.
Aconselhado pela representante de uma grande editora, uma Cia das Letras ou uma Todavia francesa, a ir fabricar móveis ou a encontrar uma nova espiritualidade para ocupar sua vida de aposentado, o narrador acaba publicando por uma pequena editora, ainda que com a ilusão de todo autor de um primeiro livro de ter a vida transformada por sua obra, com resenhas em jornais, entrevistas e grandes vendas.
Sai um texto num blog confidencial e o mundo desaba sobre o autor, acusado de apropriação cultural. A avalanche será devastadora.
O romance de Quentin esbanja humor corrosivo, ácida ironia sobre o identitarismo e reflexão a respeito das novas causas intelectuais.
O caro leitor já percebeu que o alvo de Abel Quentin é a cultura woke, nascida e desenvolvida nos Estados Unidos, de onde é exportada para o mundo, com ampla disseminação na França e no Brasil.
Romance reacionário? Reação aos questionamentos ao “privilégio branco”? Mais uma expressão do ressentimento com a desconstrução do imaginário branco, heterossexual, colonial e patriarcal do Ocidente?
Pode ser que sim, pode ser que não. Em princípio, um livro divertido sobre contradições, excessos e paradoxos de uma nova e poderosa matriz intelectual ancorada em princípios morais e de justiça. Para o narrador a pergunta a ser feita era: para o poeta Willow a sua negritude era mais importante do que o seu comunismo e ele havia deixado os Estados Unidos para viver na França por se negro ou por ser comunista? A resposta mais simples é as duas coisas. Como diz aquela música, tente outra vez.