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Sobre fazer rir

Crônica sobre o cotidiano em tempos sombrios

Sobre fazer rir
Fazer rir em tempos sombrios segundo o GPT

A língua se mexe. Não é preciso recorrer à piada de duplo sentido para saber disso. Nenhuma língua, salvo, talvez, na Coreia do Norte, fica blindada à influência estrangeira. O português praticado no Brasil anda diferentão. O pessoal fala: “Vai ter de suar a camisa para entregar”. Eu, sexagenário, procuro o complemento: entregar o que mesmo, vivente? Ah, não torra, cara! Será que ainda se diz torrar para amolar? Será que ainda se usa amolar para encher o saco? Será que se diz encher o saco? Acho que sim.

O saco nunca sai de moda no país.

Outra expressão que me deixa perplexo é a tal “não é sobre”. Como assim? Não é sobre filho, não é sobre velhice, não é sobre fazer rir. Parece que o assunto surgiu do nada, que uma parte se perdeu no caminho, algo como não estamos falando sobre filho, velhice, humor.

Enfim, este texto não é sobre usar sobre ou entrega, mas sobre escrever depois dos 60 anos de idade. De 1986 a 2000 fui repórter, editor, correspondente internacional, colunista, tudo.

Escrevo textos de opinião continuamente desde 1º de setembro de 2000. Primeiro, um por semana, mais longo, esparramado. Em 2004, passamos a dois por semana. Em 2007, saltamos para um por dia. Nunca mais parei. Aí me perguntam toda hora como se eu fosse anormal:

– Como consegues escrever todo dia?

Fico espantado. A resposta sincera parece brincadeira:

– Como se consegue não escrever todo dia quando se passou a vida a escrever todo dia, com chuva, sol, frio, calor, viagem, doença?

Quando tive covid-19, escrevia no hospital. Certa época, o fogo amigo sugeriu que eu tirava um dia para escrever sete textos, como se fazer sete textos num dia fosse mais fácil do que escrever um por dia. Faço de tudo. Posso escrever dois ou três textos num dia, com temáticas menos perecíveis, algo que pode esperar na geladeira sem caducar, e levar um mês para publicar esses “adiantos” por me ver obrigado pelas coisas do dia a dia a escrever sobre outro assunto mais urgente. Morre o Pelé e um publico um texto pronto sobre fazer rir?

Dentista extrai dentes ou os trata todo dia. Jornalista de opinião escreve todo dia. Cozinheiro cozinha todo dia. É simples assim. Um leitor que encontrei na rua me veio com uma questão nova.

– Ainda vale a pena escrever outra coisa além de artigo?

Ele queria dizer opinião argumentada. Era sobre crônica. A subjetividade ainda interessa? Ele mesmo respondeu: “Só fazer rir interessa”. Falei que gostava de fazer rir, embora nem sempre escreva para isso. Ele provocou: “Claro, depois dos 60 fica mais difícil”.

Diante da minha perplexidade, explicou pacientemente:

– Tudo fica mais crepuscular. Só se for riso amarelo.

Pode-se fazer um humor mais maduro, sugeri. Ele riu.

– Mais maduro, não. Mais murcho. O velho vive em combate. Luta todo dia contra a contaminação da língua por modismo estrangeiros, tenta se defender do atropelo dos jovens, suporta etarismo, condescendência, caminhadas diárias, remédios contínuos, tudo isso. Não tem como rir.

Bem, tem a leitura da Nature, eu disse, com um sorrisinho.

– Que tem a Nature? – ele era biólogo.

Volta e meia um artigo nega tudo o que se é obrigado a fazer, eu disse. Ele pareceu não entender. Finalmente se atreveu e soltou:

– E daí?

Daí que eu me mijo de rir, exclamei, com espírito de porco, já me arrependendo de menosprezar todos os suínos como categoria.

– Será que é por isso?

Sujeito mal-humorado.

As opiniões emitidas por colunistas não expressam necessariamente a posição editorial da Matinal.
Juremir Machado da Silva

Juremir Machado da Silva

Jornalista, escritor e professor de Comunicação Social na PUCRS, publica semanalmente a Newsletter do Juremir, exclusiva para assinantes dos planos Completo e Comunidade. Contato: juremir@matinal.org

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Tags: Opinião Humor

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