Pular para o conteúdo

Um bom lugar pra ler um livro

Um bom lugar pra ler um livro
"Agora, o checklist antes de sair de casa é: chave, carteira, celular, um livro e fones de ouvido"| Foto: Roman Warren/Unsplash

Eu tenho o hábito de carregar sempre comigo algum livro. Não sei bem de onde veio o costume, mas tenho algumas lembranças curiosas. Quando minha vó Tereza morreu, eu tinha 7 anos. Me perguntaram se eu queria ir ao velório, eu disse que sim – sem saber do que se tratava. Minha irmã era bem pequena e meus primos daquele lado da família eram todos mais velhos. Por isso perguntei ao meu pai, quando ele foi me buscar: posso levar meus livros?

Outra lembrança: aos 11 anos, mudei de escola e o novo trajeto era de uma hora de ônibus mais 20 minutos de caminhada. Todos os dias, ida e volta. Para chegar a tempo do primeiro período, eu saía de casa cedíssimo, por volta das 6h. Até cogitei aproveitar o tempo no ônibus para cochilar mais um pouco, mas o sacolejo daquele coletivo pelas vias rurais ainda não asfaltadas não me permitia dormir. Logo, eu me ocupava lendo durante todo o caminho. Havia sempre um livro a mais na mochila já pesada pelos livros didáticos. Devorei todos os clássicos emprestados da biblioteca da escola naquele caminho diário que fiz totalmente sozinha por alguns anos.

O fato é que até hoje, na hora de sair de casa, faço o checklist: chave, carteira, celular… e um livro. Qualquer livro. Às vezes apanho um que esteja mais perto da saída, desde que seja pequeno e leve. Se for de contos, melhor ainda. Se tiver por perto um livro já começado, ele tem preferência, claro, mas se for muito grande ou pesado, perde o lugar para outro.

É verdade também que, às vezes, o exemplar-companheiro sai só para passear, como foi no velório da minha avó. Chegando lá, eu descobri o que era um velório. Lembro que chorei muito e meu pai ficou comigo o tempo todo. Mas até chegar lá, sem saber muito bem para onde estava indo e o que iria encontrar, os livros eram meu lugar de conforto.

Na vida corrida de hoje em dia, levar o livro só para passear é raro, mas acontece muito. Em compensação, me mortifico se tiver que enfrentar alguma sala de espera ou engarrafamento sem um mísero livrinho na bolsa para ler.

Enfim, tergiverso. O que eu queria dizer é que esse hábito tem suas camadas de complexidade. Por exemplo: quando não tem lugar pra sentar no 375 a caminho do Campus do Vale da UFRGS, onde curso mestrado, como ir lendo ao longo dos 55 minutos de viagem até lá? Já tentei ler de pé, empunhando o livro ou kindle com uma mão e me segurando com a outra… Mas como diria Bartleby, o escrivão: acho melhor não. E com o coletivo muito cheio, fica realmente impossível. 

A solução para esse problema veio com os audiolivros. Agora, o checklist antes de sair de casa é: chave, carteira, celular, um livro e fones de ouvido – porque se der pra ler sentadinha, melhor, mas se não der, ponho os fones e coloco um audiolivro para tocar no app do celular. Já são inúmeros títulos disponíveis, boa parte deles narrados pelos próprios autores. Foi indo e voltando das aulas na UFRGS que reli (ouvindo) os livros de Giovana Madalosso para a mediação de sua participação na última Flip. Tanto que quando a encontrei no evento, ela me parecia uma velha conhecida, porque eu tinha convivido com a sua voz a me narrar histórias por horas e horas nos audiolivros de Suite Tóquio e Tudo pode ser roubado.

Dia desses, precisei reler o livro Neca, de Amara Moira, para participar de uma atividade. Eu já tinha lido o livro logo que saiu, em outubro do ano passado, mas queria rememorar a história. Eu tinha uma casa para limpar e um app de audiolivros: Neca durou o exato tempo de uma faxina. Eu podia ter sentado no sofá e revisitado o livro físico, cheio de marcações e destaques de passagens antológicas. Claro que podia. Mas aqui eu quero chamar atenção para o audiolivro não só como inovação de suporte, mas também de linguagem.

Neca não é um livro comum. Para começar, ele não é nem escrito em português. É algo que eu nunca tinha visto: Neca é um romance em bajubá, “a língua das bichas”, um dialeto inventado como forma de resistência, a partir de expressões de terreiro e palavras em iorubá (mas não só), concebido por pessoas LGBTs, sobretudo as que vivem e/ou trabalham nas ruas, para que pudessem se comunicar sem que os alibãs entendessem. 

Alibã – do bajubá: policial. Dou essa colher de chá aqui, mas saiba que Neca não vem com glossário. E é por isso que ouvir o livro na voz da própria autora é tão maravilhoso. A prosódia do deboche é um grito de orgulho, apesar das agruras narradas. O super-poder da entonação que, muitas vezes, revela o significado das palavras é um capítulo à parte. Ao final do livro, talvez você não saiba exatamente o que cada palavra em bajubá quer dizer, mas certamente você sai tocada com o que aquela narradora passou. Dá para entender tudo sem entender nada. Se entregar para a experiência garante o barato.

Neca é, na essência, um livro falado. Da mesma forma que o bajubá também não está nos dicionários. Fiquei pensando nas poetas de slam e nas literaturas indígenas, que têm sua pedra fundamental na oralidade.

Quando Heloisa Teixeira (então Buarque de Hollanda) resolveu fazer a coletânea As 29 poetas hoje, viu-se numa encruzilhada: ela queria incluir a produção de poetas de slam, mas achava que a poesia feita para ser dita perdia força no texto meramente escrito. Por isso, optou por incluir ao final dos poemas um qrcode com vídeos das performances. Se fosse no formato audiolivro, esse problema estaria superado e o desafio se inverteria: as poetas do texto teriam que se preocupar em fazer poemas que performam bem quando ditos em voz alta.

A vida não é útil – disse Ailton Krenak e depois alguém transcreveu e transformou em livro – e a literatura também pode não ser. Por um lado, a inovação do audiolivro enquanto suporte me permite, sim, ler mais e mais confortavelmente nos momentos de espera e no trânsito, bem como viabiliza a leitura para pessoas com deficiência visual e outras limitações. Mas esse papo não pode ser só sobre utilidade ou produtividade. Que seja reconhecido também como possibilidade de expansão da literatura e inovação formal da escrita.


As opiniões emitidas por colunistas não expressam necessariamente a posição editorial da Matinal.

Nanni Rios

Nanni Rios

Jornalista, livreira e curadora na Livraria Baleia. Escreve sobre questões de gênero, universo LGBTQAPIN+ e literatura.

Todos os artigos

Mais em Opinião

Ver tudo