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Serranos na várzea

Parêntese #303

Sempre chovia e fazia frio quando os serranos chegavam.  Eles vinham nas primeiras semanas do outono para a colheita manual do arroz. A viagem na carroceria de caminhão em estrada de chão durava meio dia, desde que não fosse preciso varar trechos estragados por uma chuvarada repentina. Nesse caso, o maior risco era o veículo parar num atoladouro ou escorregar para uma vala da beira do caminho, obrigando o chofer a buscar ajuda de algum sitiante disposto a prestar socorro com uma junta de bois, uma parelha de cavalos ou um trator. 

Mesmo que só chegassem ao anoitecer – como já havia acontecido em anos anteriores --, eles apeavam trocando impressões ruidosas sobre a viagem. Impressionante como conversavam. Para nós crianças, a presença daqueles homens de fala arrevesada era um acontecimento incomum no povoado rural da margem direita do médio Jacuí. 

Lembrar aquele tempo gera certo alvoroço na minha memória. São os primeiros registros da vida consciente, reminiscências difusas que brotam sem cronologia. Como os serranos vinham todos os anos entre o fim de março e o início de maio, eu não seria capaz de dizer se algo aconteceu em 1950 ou num dos cinco anos seguintes, mas com certeza tudo que guardei sobre os serranos aconteceu no meu primeiro setênio, encerrado com a morte de Getúlio Vargas. Olhando as coisas por outro ângulo, eu poderia dizer que a tragédia do Catete foi um divisor de águas que precipitou uma série de mudanças.  

Além perder os últimos dentes de leite, passei a morar com os pais e irmãos na cidade, onde reencontrei, na grande escola dos padres, colegas que conhecia lá de fora – núcleo da minha identidade primordial, jamais desfeita pela adesão à vida urbana.     

O que mais reluz na minha memória sobre os serranos é o aspecto físico daqueles sujeitos capazes de parecer alegres e risonhos, mesmo sendo fundamentalmente taciturnos. Eles se igualavam pelo uso contumaz de chapéus velhos e roupas escuras, surradas. Pois não estavam ali a passeio. Vinham pelo dinheiro, fruto do seu trabalho especializado, único nas redondezas. Valentes serranos. 

Recordando agora, décadas depois, não me consta que esses operários vindos da serrania vizinha tenham sido alguma vez focalizados pela imprensa, na época. Foram sempre protagonistas anônimos de uma saga particular nunca reconhecida pelos promotores das primeiras festas nacionais do arroz, nas décadas de 1940 e 1950.