Sou porto-alegrense, me criei em Petrópolis, na penúltima parada antes do fim da linha do bonde que tinha o mesmo nome do bairro. Diariamente, via Erico Verissimo sair para caminhar. Receita médica, ouvia-se dizer. Caminhar faz bem para saúde? É o que nos perguntávamos. A medicina diz que sim, tanto que virou exercício. Hoje, todo mundo caminha, corre. Naquela época ninguém cronometrava tempo ou media passos. Caminhava-se para ir de um lugar a outro, o tempo todo.
Criança, era encarregado da compra do pão na Padaria Record, no fim da linha do bonde João Abott, uma parada antes da minha. Era longe o suficiente para eu não resistir em abocanhar a ponta daquela bengala recém saída do forno (assim se chamava a baguete). As padarias se localizavam sempre na frente de uma parada do bonde, assim como a farmácia, a fruteira e o que mais era preciso para a vida diária. O transporte organizava a cidade ao natural.
Os automóveis eram raros, tanto que nosso campo de futebol era no meio da rua. De pedras irregulares ainda por cima. Haja joelhos! Mas a gente se divertia. De vez em quando o jogo parava, o automóvel passava e logo a bola voltava a correr. E nós, atrás dela.
Para ir à escola, trabalhar ou passear tínhamos os bondes. Dava para chegar a qualquer lugar da cidade, era só pular numa estação e esperar a outra linha, igualzinho aos metrôs das capitais europeias ou de Buenos Aires daquela época. No Brasil ainda não havia metrôs, só bondes.
Ninguém falava em Plano Diretor, mas tinham feito um, o de 1959. Ele se propunha a tudo mudar, pois a cidade não estava preparada para o futuro, diziam. Muita, muita gente virá morar conosco. E de fato a migração campo-cidade foi intensa. Falava-se em explosão demográfica. A solução, na visão do Plano, era abandonar os bondes em favor de veículos movidos a petróleo, principalmente o automóvel particular. Fim da linha para os bondes elétricos.
O novo plano obrigava que os novos edifícios residenciais ou comerciais tivessem garagens. Ruas seriam alargadas e muitas novas avenidas seriam abertas sobre onde ainda havia casas. As normas para construção de edifícios, por outro lado, passaram a ser muito mais restritivas, criando recuos em todas as direções e prédios de menor altura. Os antigos eram como aquele em frente ao Araújo Vianna, que tem uma gigantesca parede onde o Melo pintou uma coca-cola também gigante. O modelo agora era o das quadras de Brasília, o que, em princípio, era bom. O erro estava em fazer isso sobre uma cidade construída com outra lógica.
Na esquina da Souza Doca com a Protásio Alves, a novidade do novo plano: um edifício de oito pavimentos. Térreo com pilotis, aberto, sem grades. Entrávamos ali com nossas bicicletas como se brasilienses fôssemos. Era o progresso. Uma nova cidade nascia.
Esses novos edifícios, no cálculo dos planejadores, com essas alturas e com esses índices de aproveitamento seriam suficientes para abrigar os milhões de habitantes que estavam por vir e deixariam a cidade com uma densidade adequada, bem ensolarada e arejada. E, de fato, aos poucos fomos nos tornando a capital mais verticalizada do país, mantendo uma densidade agradável para se viver (Sim! Somos a capital em que mais gente mora em edifícios! Não é incrível?). Coisa com que o atual prefeito, pelo visto, não concorda, quer edifícios ainda maiores por toda parte.
Porto Alegre, no entanto, cresceu muito menos do que se imaginava e, até mesmo, passou a perder população desde a última década. O curioso é que, ao contrário do que o bom senso indicaria, o Plano Diretor foi aumentando drasticamente a altura e dimensões dos edifícios. A cidade que tinha sido preparada para abrigar os milhões de habitantes que não vieram (tem mal e mal 1,4 milhão) começou a perder sua característica acolhedora e bem dimensionada, que a diferenciava das demais cidades brasileiras. Pior, agora se prepara para permitir a construção de imensas torres que vão alojar fantasmas, ou, sem gracejos, capital imobilizado.
Os efeitos de um Plano Diretor sobre a cidade não são imediatos. Vai demorar bastante até que o porto-alegrense se dê conta do que está sendo decidido agora. Vai ser tão lento, que a maioria nem vai relacionar o provável desgosto com o que se verá com esse momento de aprovação do Plano. Mas vai ser tarde para lamentar, não vai ter mais volta.
Os registros materiais que nos trazem à memória a cidade que guardamos dentro de nós, como os do início desse texto, vão desaparecer. É o que você quer? Vizinhos morando no trigésimo andar? Sombras gigantescas sobre sua casa? Carros e mais carros entrando e saindo de garagens? Ruas congestionadas, alagamentos, luz e água faltando depois de cada temporal? Quer jogar fora a singularidade urbanística da capital que vinha sendo construída lentamente por décadas?
Se não é o que você quer, então por favor se indigne, proteste, reclame, pois a Comandante Nádia quer aprovar a toque de caixa um Plano Diretor que dá a nossa cidade de presente de Natal ao mercado imobiliário.