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Diário da guerra do sono: Capítulo VI – Atitude

Parêntese #306

Três semanas sem aparecer no quartel. Isso nunca tinha me acontecido antes, eu nunca havia ficado tanto tempo sem ir cumprir meu dever. Três semanas olhando para as paredes, eu sendo uma coisa sem forma, apenas um corpo, gemidos e dores. Anestesia para a vida. A Marisa urrava de dor, minha sogra foi morar com a gente, meu cunhado também, não havia dia que alguém do quartel não me fizesse uma visita. A casa respirava um silêncio torto, como se as paredes tivessem engolido um grito que não sabiam soltar. Era como se eu tremesse a cada coisa que eu tocava, incapaz de completar um gesto. Formaram-se linhas finíssimas de memória, linhas cortantes de memória: a voz, o jeito, os pratos, os talheres, os horários. Ausência translúcida. Cada segundo que passava me dizia veja só, Major Orquídea, tu não vais conseguir, mas mesmo assim continuas vivo, essa é a minha tortura para ti, a não ser que faças algo, a vida continuará pulsando dentro desse monte de carne e estarás condenado a lembrar, para sempre. Isso era a vida: tocar a dor sem desaparecer, tocar o sofrimento e ainda assim observar com repugnância a frieza dos móveis, a arrogância das cadeiras da sala, a insensibilidade do roupeiro, a empáfia do fogão, que não faziam outra coisa a não ser seguir existindo, esfregando na minha cara que era possível existir sem passar por uma dor tão tremenda. De madrugada os móveis pareciam murmurar o nome dela, o silêncio me encharcava até os ossos e qualquer sinal de ternura me fazia rebentar em pratos como um moleque inseguro desses que correm em direção à mãe após se machucarem. Três semanas.