Confira todos os textos da edição #305
- A volta dos que não foram, por Carlos André Moreira
- Quanto pesa uma pena?, por Alyne Rehm
- Carne vermelha, por Helena Terra
- Diário da guerra do sono: Capítulo 5 – Tragédia, por Cristiano Fretta
- Canções de 1978, por Luís Augusto Fischer
- Serranos na várzea – Parte 3, por Geraldo Hasse
- As cinzas insurgentes de Roberto Gigante, por Jandiro Koch
- Santa Catarina, a santa mesmo, por Paulo Damin
- Apadrinhe a Escola Casa de Teatro, por Juremir Machado da Silva
- Porto Alegre, 1893-95: Guerra civil, novas fábricas e operariado, por Arnoldo Doberstein
Felicidade
Não sei o ano, parece que foi no final da guerra, veio no caminhão da serra uma criaturinha identificada inicialmente como parenta do nosso querido palhacinho Tingó. Arredia e sestrosa, ela já não podia esconder que era menina: debaixo da blusa afloravam os bicos de uns peitinhos. Seu jeito arisco aguçava a curiosidade dos meninos e os comentários de adultos maliciosos. O fato é que desde o começo ela chamou a atenção do povo da vila. Todos a tratavam por Felícia, abreviação de seu nome de batismo: Maria da Felicidade.
Um dia, sem mais delongas, ela saiu do seu recato inicial, cobriu-se com um vestidinho discreto e se foi à cidade em caravana de pedestres para uma função religiosa. Seria a Páscoa? Ou o Corpus Christi, já? Na barca, sem mais nem menos, como se lhe tivesse baixado o espírito da adolescência, se engraçou com Teodoro, o mais jovem dos balseiros. Aparentemente não combinavam, ela magrinha, ele parrudo como um boxeador meio-médio, mas o flerte começou ali mesmo durante a travessia do rio; na barca de volta, os dois trocaram olhares intensos, como se fossem conhecidos de outra encarnação. “Foi um engate federal”, definiu uma das testemunhas femininas daquelas cenas. Sem se falar, os dois ficaram enamorados, gerando comentários... e desdobramentos.
Alguns dias mais tarde, também sem mais nem menos, o balseiro se apresentou no acampamento dos serranos, que o acolheram como a um parente necessitado de resgate. Diante da imponência de sua figura claramente despojada de intenções maldosas, ninguém ousou desdenhá-lo, desafiá-lo ou provocá-lo. Em camisa de mangas curtas, Teodoro era tão ostensivamente forte que impunha respeito, sem precisar falar alto. Foi assim que, combinando o comedimento de um felino e a inquietação de um cavalo em terreno desconhecido, ele disse que estava ali porque gostaria, precisava “trocar uma palavrinha” com a moça chamada Felicidade...