Confira todos os textos da edição #303
- Sobre Jards Arnett Macalé da Silva, por Luciano Mello
- Raduan Nassar: um olho na literatura, outro na vida, por Helena Terra
- Perguntas para “O Agente Secreto”, por Álvaro Magalhães
- Serranos na várzea, por Geraldo Hasse
- Cidades são redes, por Juremir Machado da Silva
- Poesia de alta voltagem, por Marcia Benetti
- Uma alegria sem adeus, Mariana, por Tiago Maria
- Ninfas na lomba do cemitério, por Luís Augusto Fischer
- Gota D’água, Os Saltimbancos e O Cio da Terra, por Arthur de Faria
- Porto Alegre, 1891-95: os primeiros anos da Gazetinha, republicana, maçônica, operária e quase sensacionalista, por Arnoldo Doberstein
- Diário da guerra do sono: Capítulo III – O asfalto, por Cristiano Fretta
Rosto contraído é a cara do diabo. O diabo explícito, se mostrando, deixando sua essência sair do armário. A dor lateja sem abrir fendas, o choque todo. Um corredor estreito se fechando a cada pedaço de segundo, as paredes pedem silêncio e calma, mas a cara do diabo ali, explodindo para dentro e para fora: grito. O pior da dor é que ela nunca responde, está sempre esquiva, se mostrando pontuda, latejando demais, o corpo todo: um pecado de carne, o peso no peito, calor inteiro. A dor é sombra que abraça, o corpo é soldado e front, sossego e batalha. Língua pesada, dá para ver, punhos fechados longe da possibilidade de um soco, unhas cravadas nas palmas das mãos. A escuridão aumenta o espaço da dor que se derrama por dentro, a boca cerrada incapaz de proferir palavra, impossível dizer qualquer coisa como bálsamo ou lânguido, dali só a garganta projeta pequenos sons molhados por entre os dentes serrados. A dor são dedos longos, o corpo é um território estrangeiro, casa tomada por estranhos, impossível de ser reconquistada, o coração bate dentro da cabeça, a respiração esbarra no grito, perde o ritmo, dissolve-se no ar carregado. O chão é distante, seus pés estão em nuvens, ele é todo carne que sente, não mais do que isso, dá para ver. Não há sequer um único segundo capaz de negociar com a escuridão pois ela é o próprio corpo, exausto de si, surda para qualquer grito, muda para qualquer protesto. Ainda assim em uma fração de segundo vi que ele tentou encontrar seu corpo como se não houvesse dor. É como se nada no mundo tivesse nome e toda a realidade e os planetas e as estrelas e as galáxias existissem apenas pelo corpo e todo o resto fosse bobagem. Mas é impossível existir assim enquanto algo o atravessa e também, dá para ver, é impossível dizer um vai passar, não há nada a fazer a não ser continuar respirando, parece que eles não desistem nunca. Tá no sangue, não tem jeito.
Impossível eu continuar depois do afrouxar das pernas e da dor acima da bexiga. Me contraí todo, curvei um pouco para a frente e disse para que o Paes continuasse. Ele pareceu surpreso com a minha saída, o filho da puta, mas assim que saí da sala ouvi que continuou fazendo o que tinha que ser feito.