Confira todos os textos da edição #303
- Sobre Jards Arnett Macalé da Silva, por Luciano Mello
- Raduan Nassar: um olho na literatura, outro na vida, por Helena Terra
- Perguntas para “O Agente Secreto”, por Álvaro Magalhães
- Serranos na várzea, por Geraldo Hasse
- Cidades são redes, por Juremir Machado da Silva
- Poesia de alta voltagem, por Marcia Benetti
- Uma alegria sem adeus, Mariana, por Tiago Maria
- Ninfas na lomba do cemitério, por Luís Augusto Fischer
- Gota D’água, Os Saltimbancos e O Cio da Terra, por Arthur de Faria
- Porto Alegre, 1891-95: os primeiros anos da Gazetinha, republicana, maçônica, operária e quase sensacionalista, por Arnoldo Doberstein
- Diário da guerra do sono: Capítulo III – O asfalto, por Cristiano Fretta
1935 foi um ano bom, mais do que isso, excelente, na cidade de Pindorama, interior do estado de São Paulo. Em uma quarta-feira como outra qualquer, no dia 27 de novembro, a senhora Nassar, imigrante libanesa, deu à luz mais um menino: Raduan. Ela pariu dez filhos, entre homens e mulheres, mas esse extraordinário em diversos sentidos. À primeira vista, ele deve ter se parecido com todos os outros. Crianças, por mais singulares que sejam, incorporam-se aos sistemas familiares e às saias de suas mães por necessidade. É o tempo, tema que esse menino acabaria por trabalhar incansavelmente em sua escrita, que muda tudo. O tempo e a personalidade, ou a natureza, ou a índole, ou o destino que mudam. Vai saber! Se William Shakespeare fez Hamlet dizer que “há mais mistérios entre o céu e a terra do que imagina a nossa vã filosofia”, quem somos nós para discordar?
O fato é que essa criança se tornou um homem e um escritor muito diferente de sua geração, desenvolvendo uma linguagem densa e erotizada fora de série, como ele próprio, um ser humano capaz de doar para o país a fazenda Lagoa do Sino, no sudoeste paulista, não falo de uma chácara, com 643 hectares de área produtiva em que viveu e laborou durante anos após ter se afastado da Literatura. Quem vem de regiões rurais como eu, não importa de que parte do Brasil, mais ou menos sabe a quantidade de chão que isso representa e o quanto ele é valioso. Para se ter uma ideia, a área do imenso Central Park, na cidade de Nova Iorque, nos Estados Unidos, é de 340 hectares, praticamente meia Lagoa do Sino. Conforme matéria publicada na revista piauí, em 2012, o valor estimado na escritura de doação da propriedade foi de 11 milhões de reais, sendo que, uns anos antes da transferência, um fazendeiro teria oferecido 18 milhões de reais por ela. E com que fim Raduan Nassar fez essa doação?
Educacional. No dia 3 de fevereiro de 2011, uma quinta-feira, a fazenda Lagoa do Sino passou oficialmente para a UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), atualmente funcionando com os cursos de Administração, Ciências Biológicas, Engenharia Agronômica, Engenharia Ambiental e Engenharia de Alimentos, e prestes a instalar mais alguns. Uma doação de alta importância para o ensino público e para lá de trabalhosa. Antes disso, USP (Universidade de São Paulo) e Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) recusaram a oferta, causando relevante desânimo em Raduan Nassar. Se não fosse pela incansável e obstinada jornalista e escritora Marilene Felinto, talvez esse sonho admirável nunca tivesse se realizado.
E é sobre isso que quero falar. Quinze anos depois, a fazenda transformada em universidade apresenta resultados emocionantes. Eu estive lá agora no início do mês para as comemorações dos 90 anos de Raduan e de 50 anos de lançamento de seu romance Lavoura Arcaica. Durante três dias, a seu convite, hospedada em uma pousada em Campina do Monte Alegre, a cidade mais próxima do campus, tive a felicidade de conhecer e de conviver com pessoas que também o admiram e estimam e que falaram sobre sua obra literária e deram depoimentos sobre ele e seu gesto no evento Um olho na Literatura, outro na vida.