Passei, em Paris, na frente de um café onde um argentino lia Borges. Ao voltar, retomei um pequeno conto que me obceca como leitor do maior escritor argentino e um dos maiores do mundo em todos os tempos.
É sabido que Jorge Luis Borges apresenta, em Evaristo Carriego, algumas versões de um improvável duelo entre dois gaúchos prováveis, ou vice-versa.
A moral dessa história aparentemente imoral é a nobreza gaúcha. Homens que não podem escapar ao destino são capazes, no entanto, de agir dignamente até o fim, o que já é uma forma de cumprir o próprio destino.
Eu mesmo, fadado ao meu destino, sem perdão da redundância, já contei duas outras versões desse duelo infinito e repetitivo. A segunda versão surgiu quando eu relia Borges em São Miguel dos Milagres. Embora isso possa parecer mais improvável que os duelos que se repetem, recebi um e-mail com uma nova e singela versão do combate, dessa vez, creiam, garanto, em Palomas.
Na minha primeira versão do duelo, o fato também acontecia em Palomas. A chegada do forasteiro também se repetia. Ele descia do trem, todo de preto, atravessava a vila silenciosamente, na metade de uma tarde em que se podia ouvir o canto das cigarras quase tão forte quanto o apito da locomotiva, e hospedava-se na casa de um homem que nunca vira. Conversavam ao cair da tarde, tomando mate, sentados em bancos de três pernas cobertos com pelegos, e sentiam-se bem um na companhia do outro.
Nessa versão que me chegou por correio eletrônico, a meu ver com um endereço criado para a circunstância, os dois levantavam-se muito cedo, mateavam e saíam a cavalo para recorrer os campos. O anfitrião, num gesto raro para um gaúcho, cedia o melhor cavalo ao visitante.
Eu não entrava nas considerações do autor de História Universal da Infâmia, ou do incontornável texto “poesia gauchesca”, sobre a natureza dos duelos ou sobre os duelos da natureza. Dizia apenas, seguindo o relato que me fora enviado em hora tão propícia, que, pelas sete horas da manhã, os dois companheiros apeavam dos cavalos na frente de uma casa com uma janela de vidro de onde se podia ver o cemitério de Palomas, desatavam os cinturões com seus revólveres, que depositavam à sombra de um umbu, e enfrentavam-se munidos apenas de longas adagas que reluziam ao sol como se fossem espelhos.
Era uma luta rápida e sem barulhos de ferros. O forasteiro avançava sem qualquer temor. O palomense o colhia com a sua adaga de modo frontal, furando-lhe a buchada. Uma golfada de sangue ensopava o “pano verde do campo”. Em seguida, o palomense persignava-se, fechava os olhos do morto e, ainda na mesma manhã, dava-lhe sepultura cristã à beira da estrada, onde, durante muitos anos, se via uma cruz de madeira, que, depois da morte do palomense e de muita água, o tempo consumiria.
No mesmo dia, o “assassino” apresentava-se à polícia e confessava ter matado um homem de quem tudo desconhecia, inclusive o nome. Não conseguia, ou não queria, apresentar qualquer justificativa para o ato. Fazia questão, porém, de salientar a sua certeza de que o morto era um homem honrado. Por ser primário e não representar perigo social algum, sendo mais improvável do que tudo a sua fuga, o réu confesso ficava em liberdade. O processo arrastava-se por anos sem fim.
O palomense de nome Bento morreria numa queda de cavalo. A única testemunha, na frente de cuja casa o duelo acontecera, nunca seria ouvida. O e-mail não me fornecia o nome dessa pessoa, mas, pela descrição feita, não podia me enganar. O forasteiro fora morto na frente do rancho do velho Borges, o cego, que da sua janela de vidro parecia gastar a vida vendo chover em Palomas.
Certo mesmo, com certeza firmada, é que cada homem acrescenta alguma coisa a uma mesma história contada.
Palomas, no passado, chamava-se Samarcande, cujo nome significa “lugar do encontro” ou “lugar do conflito, onde a morte esperava quem não ouve avisos”.
Depois, viraria Macondo por decisão de um fazendeiro leitor de García Márquez. Essa história é sempre a da morte, como qualquer um sabe sobre a vida. Sommerset Maughan teria falado dela num conto. Antes dele, um sábio persa tratou dela num poema que só faz sentido quando bem interpretado. O avatar seguinte desse duelo envolvia dois argentinos e dois brasileiros de apelidos estranhos, cujos nomes prefiro agora omitir.
Na terceira versão desse duelo, que resumo em três linhas por economia de meios e obediência aos fatos revelados na investigação, cujo relatório recebi de um bisneto do comissário e me foi confirmada por um neto do cego Borges, a morte era mais rápida no gatilho do que os dois viventes. Um anônimo diz que há cento e uma versões desse confronto mortal que inspirou Borges.
Uma delas acontece em Paris, num café da Vaugirard.