Pular para o conteúdo

Sumário da Vida

Parêntese #295

Wittgenstein disse que “tudo o que pode ser dito pode ser dito claramente”. Acredito que sim, mas, por uma série de motivos, penso que não é fácil. As palavras, quando carregadas de uma intenção mais significativa, têm de ser as exatas. Não servem as próximas, parecidas. O mundo está cheio de desavenças por causa desses pequenos desvios entre o que se desejava falar e o que foi, de fato, enunciado pelos nossos lábios, principalmente se trouxerem o conteúdo que o tempo tenta apagar. Lendo o último livro, Educação da Tristeza, do Valter Hugo Mãe, encontrei duas frases que pesaram muito sobre os batimentos do meu coração. 

Primeira: que “o tempo conta coisas, não as junta”. 

Segunda: que “o tempo é a disciplina do desaparecimento”. 

Todos nós seremos, mesmo os que se destacam e que têm suas biografias registradas em algum lugar, um dia esquecidos ou ignorados a ponto de cairmos na mesma vala de todo e qualquer ser humano que tenha existido, o que não é um problema, nem uma violência. É um fato. A memória do mundo não dá conta de tanta gente. As nossas individuais já penam para nos suportar e preservar. Márcia Huber, escritora brasileira, que quase ninguém ainda conhece porque lançou, neste ano, o seu primeiro e impactante livro de poemas, O Lábio é Outro, de certa forma, escreve sobre isso: a costura, ou talvez o bordado, ou talvez o remendo, que a memória tenta realizar entre o primeiro e o último dia de nossas vidas ou de pessoas a quem estivemos apegados enquanto foi possível. 

Ninguém sabe e pode, independentemente da experiência e da riqueza de suas sinapses, ir além do possível. O impossível não foi feito para nós. Não é compatível com a vida. A realidade não o aceita. Não importa a qualidade da conversa que possa chegar a ela, ela não cede. A realidade é a morte jogando xadrez conosco por distração e talvez até cansaço de si mesma. Faz anos que venho pensando sobre o quanto ela se detesta. Se a realidade se amasse, não teria negociado com a existência o fardo da finitude e nos poupado do pseudoaprendizado da morte, porque o que conseguimos, quando conseguimos, seja por meio da religião, seja por meio de um psiquismo em dia, é maquiar o medo e a dor de morrer. Minha mãe me disse, isso lá atrás, quando eu nem trinta anos tinha e ela sonhava em poder fazer pelo menos sessenta anos, como a morte, nela que já se sentia morta, demorava a se concretizar.

“meu primeiro roce com a morte/ foi aos cinco anos/pulei na piscina muito funda/ sem as nadadeiras/ no fundo das águas turvas/ quase chegando à pedra/ achei uma pena ter que morrer tão cedo/ sem sequer ter aprendido a tocar um instrumento/ sem ter tido um amor/ sem ter crescido”, Huber escreve um pouco antes de, com mais versos, revelar o alívio que, do tempo de morrer criança, salva por um tio escapou. Não esqueço o toque, ou o roce, das mãos do meu pai quando eu, com pouco mais de dois anos, tentei também, em vão, sobreviver à água que me engolia. 

O Lábio é Outro está entre os livros mais delicados, não frágil, e comoventes que já li. É certo, como dois e dois são quatro (que não sejam nunca cinco), que cada leitor se apropria do que lê conforme sua subjetividade e história, mas também é certo, como um cálculo matemático, que a poesia não se dobra a quem a lê. São os poemas que nos submetem a eles e não o contrário. E de modo simples, iluminado, claro como Wittgenstein acreditava. Leio os versos “olho para o mistério/ me emociono/ quando vejo amigas de minha mãe/ vivendo” e, redentoramente, me reconheço em cada sílaba. 

o lábio é outro, de Márcia Huber

2025

Editora 7Letras

Ver o livro

As opiniões emitidas pela autora não expressam necessariamente a posição editorial da Matinal.

Helena Terra

Nasceu em Vacaria e vive em Porto Alegre. É escritora com diversos livros publicados, jornalista e editora na Besouros Abstêmios. É também conselheira e vice-presidente da Associação Literatura Livre, no Rio de Janeiro.

Todos os artigos

Mais em Parêntese

Ver tudo

Mais de Helena Terra

Ver tudo