O Trilhas de Memória é um projeto inovador que une turismo cultural e preservação do patrimônio imaterial angolano, financiado pelo Instituto Camões e realizado em consórcio entre a Okuya Adventure, o Biso e o Curadorias.art. Inspirado na tradição dos griots e na força da oralidade africana, o projeto propõe a criação de seis rotas de turismo cultural em Angola, estruturadas a partir de histórias orais, mitos, lendas e tradições locais, transmitidas de geração em geração pelas comunidades.
Além de mapear e valorizar o patrimônio cultural angolano, o projeto promoveu uma residência artística e formativa entre junho e julho de 2025 na cidade de Lubango, o Programa de Capacitação em Mediação Cultural e Empreendedorismo, reunindo 25 jovens de diferentes províncias. Nesse espaço de criação coletiva, eles foram capacitados em arte, literatura e cinema, e uma formação específica em projetos e carreira para atuarem também como multiplicadores do projeto, desenvolvendo habilidades de escrita, narração, escuta e mediação cultural. Assim, cada participante tornou-se não apenas guardião de histórias, mas também protagonista na transmissão da memória e da identidade angolana.
Os textos seguintes – escritos por algum desses jovens – refletem o impacto dessa experiência. São narrativas que misturam crônica, poesia, testemunho e reflexão, revelando Angola sob múltiplos olhares: da espiritualidade ancestral à resistência cotidiana, da beleza natural à força da cultura viva. Cada voz é singular, mas todas convergem para um mesmo propósito: fazer da memória um caminho de futuro.
Samantha Buglione
Crônica ao Anoitecer
Adelina Chachissapa
Cada vez que damos um passo com firmeza, de certo modo, o passo dado, por mais pequeno que pareça é começo de algo desconhecido. E lá estávamos nós, tivemos medo mas fomos com medo mesmo, mergulhar na imensidão da nossa tradição oral e cultural, Angola, uma pequena porção de terras frutíferas, de mares multiplicadores e de paisagens naturais únicas e exóticas. O silêncio já não era uma opção quando se tem nós na garganta, dar voz aos nossos hábitos e costumes, tradições e culturas foi e continuará sendo o nosso propósito enquanto formandos do Trilhas e Memórias Ananse. Desmistificar lendas e trazer ao de cima histórias que pareciam ser mitos e coisa da imaginação humana. Resgatar o que de bom Angola tem a oferecer, desde paisagens e lugares aconchegantes para reclinar a cabeça quando o cansaço tomar de ti e de mim, nessas viagens de aventuras e descobertas, ou mesmo de contemplar a profundidade no olhar que se tem ao estar na Tundavala, sentindo-se pequeno ante ao que os olhos enxergam no horizonte, dos verdejantes campos e do sussurrar do vento ao meu ouvido dizendo: solte o peso e seja livre, viva intensamente.
Meus avôs, presentes em espírito, são guardiões da minha família, comunicar-me com eles é algo que desafiou a minha lógica enquanto vivente em carne e osso. Como é possível pessoas mortas se comunicarem com os vivos? A lógica da morte foi rompida, mas em certa medida a segurança de estar protegida, descobrir dons de cura de doenças causadas por Macumba a inocentes, em África e em particular em Angola, isso é o nosso dia a dia. Aqui a Espiritualidade é notável a todos os níveis, não se brinca quando se fala de espíritos, sonhos, conexões, sobas e médicos tradicionais que usam do que receberam de graça para salvar vidas de pessoas doentes, sofridas e espíritos adormecidos, pois poucos têm o espírito vivido, de interseção e de cura. E aqui quando não se tem solução nos hospitais, doenças que um médico não consegue curar, mesmo dando fármacos e os mesmo não ficam curados, nós recorremos a um médico tradicional ou soba para nos ajudar a achar a saúde que tanto procuramos. É triste quando descobrimos de quem ou de onde vem o mal que nos aflige, de um tio, primo, amigo, colega, de alguém que nos conhece tão bem e é o mesmo que nos faz mal, nos enviam doenças dolorosas: “Tala”, azar em tudo, mambali. Curar é um dom que Deus deu a essas pessoas, médium e curandeiros.
Alguns significados
Macumba é o feitiço feito para desgraçar a vida de alguém ou matar.
Tala é a doença que putrifica o corpo aos bocados, geralmente com presença de um cazumbi para acelerar a morte de alguém.
Mambali: doença que mata toda a família atingida se não for tratada a tempo. As mortes são em um intervalo de tempo breve para toda a família. Todas elas causadas por inveja, vingança e pactos de sangue.
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Trilhas de Memórias — Entre a Arte, a Resistência e o Cotidiano
Mariano Hossi Mumbanda
Foi assim, por acaso e movido pela curiosidade, que cheguei ao Projeto Trilhas de Memórias. A oportunidade me foi apresentada por Cipriano Gaspar Somakuenje, um amigo e colega do Internato do Lar dos Estudantes, que viu a divulgação numa rede social e me chamou para conhecer. No início, confesso, duvidamos.
Era algo que não parecia caber na nossa realidade: um projeto que levava pessoas de uma província para outra, oferecendo alojamento, alimentação e capacitação — tudo de forma gratuita. Parecia bom demais para ser verdade e chegamos a comentar que poderia ser algum golpe ou uma rede com intenções duvidosas.
Mas depois pensamos: “E se for verdade?”. Oportunidades assim são raras.
Nunca tínhamos participado de algo que nos oferecesse não apenas conhecimento, mas também estrutura e condições para viver a experiência plenamente. Então decidimos arriscar. Fizemos a inscrição juntos e, para nossa surpresa, fomos aceitos. Pouco tempo depois, recebemos uma chamada de Léa Komba, membro da equipe do projeto, que explicou tudo com clareza e confirmou que era real.
Assim, partimos do Namibe rumo à província da Huíla, mais precisamente ao Hotel Vip, onde o projeto foi realizado. O que vivi lá mudou muito a minha forma de ver Angola e a mim mesmo.
A resistência como inspiração
O que mais me inspira no meu país é a resistência do povo. Aqui, a vida é marcada por filas, transportes lotados, empregos escassos e soluções improvisadas. Mas também é feita de sorrisos, gestos de solidariedade e criatividade.
Vejo jovens que criam negócios com o que têm em mãos.
Vejo artistas que transformam dor em música, pintura e poesia.
Vejo mães que sustentam famílias inteiras sozinhas, sem perder a força nem o cuidado.
Essa capacidade de se reinventar diariamente é algo que carrego como inspiração.
Mas, como jovem, também sinto os desafios na pele: a falta de oportunidades reais, a burocracia que trava ideias, a ausência de políticas que estimulem a juventude. O acesso à informação de qualidade, à tecnologia e à cultura ainda é restrito para muitos, criando um círculo difícil de romper. Mesmo assim, procuro acreditar que é possível mudar, porque já vi mudanças acontecerem.
Vivências transformadoras
Durante o Trilhas de Memórias, cada dia foi único. As oficinas e encontros não eram apenas momentos de receber informação, mas espaços de troca verdadeira, onde a escuta e o respeito eram tão importantes quanto o conteúdo. Senti-me livre para falar, errar e experimentar, enquanto era constantemente desafiado a pensar mais longe, a questionar o óbvio e imaginar novas possibilidades.
Entre todas as atividades, duas me marcaram profundamente:
- A roda de conversa — estar num círculo, partilhar vivências, ouvir realidades diferentes e sentir que minha voz era ouvida foi transformador.
- A escrita — colocar no papel sentimentos e reflexões me ajudou a organizar o que carrego por dentro e a perceber que minha experiência também é parte da memória coletiva de Angola.
As conversas com alguns mentores também foram especiais. Adylson Leão e Jesse Manuel partilharam histórias de vida com uma honestidade que tocou todos nós. Não era discurso pronto, mas vida vivida: dificuldades reais, recomeços, erros, vitórias e a construção de projetos a partir do zero. Eles mostraram que esperar apenas pelo Estado não é suficiente — é preciso agir, criar e trabalhar com o que temos.
A arte como espelho e janela
Durante os debates aprendi que a arte é um espelho e uma janela. Espelho porque reflete quem somos — nossas dores, nossas lutas e nossas alegrias. Janela porque abre caminhos para que o mundo nos veja.
Percebi, durante o projeto, que Angola tem uma beleza imensa que muitas vezes passa despercebida. Ela está nos locais turísticos, nas ruas, nos mercados, nas expressões do rosto, nas danças espontâneas e nas conversas de esquina. Mas também percebi algo que me inquieta: nossa história nem sempre é contada por nós.
Muitas narrativas sobre Angola são escritas por quem não vive aqui, por quem não conhece nossos silêncios, códigos e resistência. Isso distorce a forma como somos vistos e até como nos vemos.
O Trilhas de Memórias reforçou em mim a necessidade de registrar nossas histórias com responsabilidade e verdade — para que a memória não seja apenas preservada, mas também corrigida e fortalecida.
O talento que vem de todos os cantos
Também ficou claro que o potencial de Angola não se concentra apenas nas capitais ou nos centros mais visíveis. Vi jovens de províncias menos conhecidas, vindos de realidades diversas, apresentando ideias brilhantes e criativas. Vi talento e vontade de transformar, mas também a falta de incentivo e de espaço para que tudo floresça. Ao final, percebi que viver em Angola é um ato de resistência diária. É lidar com frustrações e, ao mesmo tempo, com pequenas vitórias que nos empurram para frente.
O que levo do Trilhas de Memórias é mais do que conhecimento técnico: levo a consciência de que minha voz tem valor, que minhas vivências fazem parte da história e que aquilo que crio pode transformar realidades, mesmo que pareçam pequenas.
Dor e esperança
Hoje, penso no meu país com um misto de dor e esperança. Dor pelas oportunidades negadas, pela juventude que muitas vezes é silenciada e pela história mal contada. Esperança porque sei que existem pessoas e projetos comprometidos em mudar esse cenário.
Sei que não estou sozinho — há muitos outros jovens criando, resistindo e acreditando. Viver em Angola, para mim, é acreditar no impossível e trabalhar para torná-lo possível.
É respeitar a memória, valorizar a cultura e lutar para que todos tenham vez e voz. É saber que cada gesto, por menor que pareça, contribui para construir o país que queremos ver.
Se antes eu pensava que mudar Angola era um sonho distante, hoje sei que essa mudança começa no presente, no que fazemos agora. E é por isso que sigo em movimento — porque Angola também está em movimento, entre a arte, a resistência e o cotidiano.
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Angola
Brenda Clemente
Vou contar-vos uma curta história. Nela não se pode ser o que quer, mas se é o que é. Nessa história o sangue tem vigor. Sabedoria acende-se à volta da fogueira e melanina é mais do que personalidade: é autenticidade!
É a história de um povo que é tão generoso que não se importou em ser população, mesmo que isso lhe roubasse ouro, cobre, diamante e mais: mesmo que isso lhe roubasse identidade.
Se o povo tem um nome? Claro que tem. Se tem morada? Também tem.
Ah Angola, N’gola, N’gola.
Terra mãe! Terra minha! Terra minha mãe!
Afinal de contas já não é mais uma história é um eco, uma voz, um grito!
Perguntei para um adulto o que é Angola e este respondeu-me em tom de brincadeira que Angola é um senhorzinho já velho – amargurado – que passa a vida a reclamar do que não tem, do que poderia ter, do que passou, do que possuía, do que deveria possuir.
Disse-me em tom de lamentação conformada: “Angola é um idoso com sonhos idealizados e irrealizados.”
Indignada com a resposta, perguntei para um menino, menino mesmo, nenge, Kandenge, desses que brincam bica bidon, garrafinha, jogam trinta e cinco… desses que não sabem jogar xadrez, mas conhecem ciências da natureza, como ninguém, sem mesmo ter estudado ciência.
Perguntei-lhe: “Xé puto, diz-me para ti o que é Angola?”
Confesso nunca vi olhos tão límpidos, sorriso tão real e nunca ouvi resposta tão sincera.
Meus sentidos todos estremeceram, se calhar entrei mesmo em estado de transe, tive uma epifania, euforia, uma dessas sensações de que o universo te revelou o que sempre existiu de facto, “deve ser assim que a mãe se sente quando nasce um filho”, pensei.
Àquele Kandengue tem sabedoria dos céus, resposta singela, mas profunda como uma mina de carvão, respondeu sem hesitar, sem titubear se quer: “Angola é um país grande e belo!”
Não sei se agradeci mesmo ao puto pela grande aula que me deu. Só sei que se criou um novo cômodo na minha mente, um belo compartimento, porque Angola afinal de contas era N’gola.
Já não mais à margem do mundo, a curiosidade dos exploradores e a exploração dos astutos, mas a agraciada da natureza, o encosto mais confortável do berço da humanidade e a cisterna de alegria.
E o povo? O povo abraça, cantarola, dança, sorri e festeja: como quem não possui nada, mas tem tudo!
Angola não é um sussurro de socorro, é um grito de autenticidade e coragem.
A vitalidade está no funge, na kizaka, no mahine, na fumbua, no feijão de óleo de palma…
A ousadia na Tchianda, Sawoia, Otchingange, Olundongo.
Fizemos arte com a escravidão, afinal de contas “havemos de voltar” e contar nossa própria história: o vermelho da bandeira já não é sangue de luto é sangue de vitória, o preto já não é África marginalizada, explorada, maltrapilha, é continente berço, é o eco de quem possui as raízes, a origem e a resposta.
Ah e o amarelo ainda é riqueza: riqueza do trigo, do café, da força de um povo que ainda sorri, sorri de si, sorri da fome e esbanja gargalhadas da vida..!
Ah Angola! N’gola, N’gola, N’gola..!
Terra mãe! Terra minha! Terra minha mãe!
Poeira? Não! É o beijo dos pés na terra, o toque do batuque…
Bairros de lata? Não! Casas de pau a pique, pura arte, talento despretensioso, som de criatividade.
Candongueiros, magoga, paracuca, loengo e múcua.
Arcaico? Não! Autêntico.
Um dia ouvi de uma griot, não angolana e nem naturalizada angolana, mas naturalmente angolana que “coragem é a capacidade de escolhermos a nós mesmos.”
Um dia seremos nós mesmos.
Angola, N’gola, N’gola!
Terra mãe! Terra minha! Terra minha mãe!
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O que Angola é
Bruno Kaluwawala, Schrisna da Rocha e Cileny Cavalo
Angola é terra bela, terra pura, terra de amor.
Angola, local que nem todos conseguem observar a sua beleza, nem a sua riqueza. Angola é um lugar, um espaço, um estado, um sentimento, que só quem tem amor, capacidade de observar de forma cuidadosa e gentil, será capaz de descrever quem ela é.
Angola, terra sofrida, terra magoada, terra com belezas escondidas.
Angola, terra de alegria, de felicidade, de amor, de gentileza, terra acolhedora.
Angola, terra maravilhosa, terra bela.
Ela, Angola, é bela, desde os seus desertos, rios, matos, montanhas, cachoeiras, cascatas, animais, plantas, até as suas culturas, línguas e pessoas.
Angola terra de conquistas, de recomeços, de lembranças de tempos sofridos, de sorrisos tristes, de pessoas perdidas através da colonização e através das guerras, terra em que podemos acreditar na força, na batalha, no famoso “ pão de cada dia”, e no famoso “onde come um, comem dois”, terra que aparentemente não tem nada, pois, a sua beleza é ocultada, silenciada, e principalmente, desprezada.
Angola, terra rica, mas menosprezada.
Angola, terra alegre desde os nascimentos, as festas tradicionais, os alimentos considerados pobres, as roupas nada comuns para muita gente, mas que carrega significado.
Angola, país que acolhe, país amoroso, país cheio de cultura e línguas, país que descreve perfeitamente, que nem o mais complexo sempre é melhor.
Angola, minha terra, minha casa, meu porto.
Angola, país lindo, agradável e acolhedor.
Sim, a minha, a tua, a nossa Angola é bela, mas quem vê a sua beleza e riqueza, é quem quer, quem acredita, e quem não tem preconceito de conhecer o desconhecido.
Uma experiência e um encontro com a realidade
Angola é um país rico em cultura, histórias e desafios. Um país que desde 1975 a sua nação tem se esforçado muito para reconstruir um lugar de contraste onde a modernidade se encontra com as tradições ancestrais.
Dali nasce o projeto Trilhas de Memória, que visa proporcionar uma visão mais profunda da busca pela identidade quase esquecida nos tempos atuais.
Para nós, o projeto foi uma junção de conhecimento e do auto-conhecimento. O projeto surgiu do inesperado e da necessidade de saber o quê que os jovens sabem sobre Angola, não aquelas história que ouvimos, na escolas ou nos livros, mas a nossa visão.
O Trilhas de Memórias reuniu jovens de alguns pontos de Angola, como Huila, Namibe, Cunene, Benguela, trazendo uma experiência única, cada jovem trazia consigo, histórias, hábitos, custumes, tradições de suas terras. Em alguns momentos de partilha sobre as nossas raízes notamos que possuímos pontos em comum nas culturas, diferenciando- se apenas nas línguas locais.
Recebemos conhecimento que nos tornaram gigantes. Chegamos em localidades onde nunca sonhamos em chegar. Ficou para nós a responsabilidade de resgatar e espalhar essa diversificada e vibrante cultura Angolana.
Participamos em festivais culturais locais, onde as tradições e a modernidade se entrelaçam criando um ambiente festivo e acolhedor.
O projeto não foi apenas uma oportunidade de aprendizado, mas também uma chamada à ação. Ouvindo e respeitando as vozes locais, seus hábitos e realidades. Ao compartilhar nossas experiências, esperamos inspirar outros jovens a envolverem-se mais e contribuirem para um futuro para essa Terra chamada Angola, que é um país de possibilidades, onde cada dia traz novas lições e oportunidades.
Sobre os autores
Adelina Chachissapa é angolana, participou do Trilhas de Memória como residente artística.
Mariano Hossi Mumbanda é angolano, gestor de marketing e distribuição musical, produtor de conteúdo e freelancer.
Brenda Clemente é angolana, estudante de Direito na Universidade Mandume Ya Ndemufayo, escritora em formação e apaixonada por unir Direito, arte e comunicação como ferramentas de impacto social.
Bruno Kaluwawala, Schrisna da Rocha e Cileny Cavalo são jovens angolanos que participaram coletivamente da residência artística.
Samantha Buglione é brasileira, escritora e psicanalista.
As opiniões emitidas pelos autores não expressam necessariamente a posição editorial da Matinal.