Monstruosidades enormes que vem em ondas reversas e afogam os pequenos.
Um tema recorrente, mas muito atual: a homofobia ou a repressão a toda e qualquer forma de existir que foge a normatividade. A gente sabe que tudo isso acontece, mas, para nossa bolha, parece uma realidade a parte. Ou não. Na verdade, ultimamente a gente vê essa onda se voltar contra a maré e mudar com tamanha violência seu curso de tal forma que a surrealidade reversa nos deixa boquiabertos. Ainda…
Por causa desses ciclos malucos… reversos… parece que reafirmar lutas é urgente. Silvero Pereira não só retoma esse tema, como também aproxima-o de sua identidade, de sua intimidade, de sua história. E a partir de sua história personifica muitas histórias… E o faz com maestria.
Não é apenas uma presença intensa, é uma persona sagaz, inteligente e com boas histórias para contar ou boas formas de contar histórias. Mas não só. Tem trabalho ali. Muito trabalho. Tanto trabalho que te faz fluir sem perceber o quanto tem de trabalho. Mas a gente que trabalha sabe.
Nesse fluir entre o artista visual, o performer, o ator, o bailarino, a música, o cantor, o contrarregra, a(s) pessoa(s), o(s) personagens se diluem… e você vai afundando junto e juntando os textos. Esse quê contemporâneo que se constrói aos cacos e que você cola com um pouquinho de você enquanto vai colando com os pedacinhos dele.
Mas aqui não é um respiro, um espaço… são buracos talvez. Buracos de onde saem moscas, aquelas que te importunam, que voam em torno do que é podre. E de tanta podridão da falta de humanidade que aponta o dedo para o outro antes de olhar para si, vai te sufocando com um plástico gigante em volta da sua cabeça cujo ar acaba aos poucos e…
De repente vira um vestido longo, realeza pura, luz na escuridão.
A pessoa transita para o bailarino, que transita por diferentes níveis de atuação (se afastando e se aproximando de si; se afastando e se aproximando de personagens), que transita para o menino, para a boneca, para o desenho, para os olhos que te levam para o fundo da alma… Já dizia o mestre Hermeto que são a janela, não?
Trabalho corporal, trabalho de personagem, trabalho vocal. Ele toca, canta, dança e constrói a própria cena posicionando objetos. Você se transporta do mar para o interrogatório… ou seria o contrário? Um performer completo. Um espetáculo que assim se constrói de muitas atmosferas, fazendo uso de elementos simples, acompanhados por projeção de imagens e desenhos que ilustram o relato do ator de forma orgânica, dialogando com o que ele nos apresenta.
Começa assim: você entra. No palco, o chão é revestido de linóleo branco. A caixa preta é revestida de fundo branco que depois vira projeção. Projeção do personagem. Não, da pessoa. Da imagem da pessoa. Do desenho da pessoa. Do desenho da pessoa na pessoa. Não, do desenho da pessoa na imagem da pessoa… mas aí já não é mais o começo, é o meio… é pedaços do início e de meio… e do fim. Não, o fim é mais simples… é limpo… mas começa assim: um saco transparente gigante no chão que vai enchendo de ar e sufocando… e sufocando a gente, a pessoa, o personagem (mas é lindo) vira um vestido.
Tem também uma bateria branca. E luzes… brancas… tipo um pedestal. Quatro, na verdade, ou cinco, porque tem um que é microfone. E você nem vê que o ator é contrarregra. E tinha mais é que ser mesmo porque com tanta regra maluca… As famílias, essas, super do bem que andam por aí e assassinam, arrancam os corações e deixam lá o buraco com as moscas.
Quando o espetáculo inicia tem esse plástico transparente, desenhando de camadas diversas as luzes e o espaço e o ator que emerge de dentro. E as moscas. Você viu? As moscas? Eu vi. E a mão precisando se agarrar, se desenterrar de uma ajuda que… que ajuda? Ajuda que mais afunda. Só parando e olhando o mar para ver se alivia um pouco a ferida. Só ignorando a ignorância para sobreviver, existir e resistir a tantos cortes para montar-se de (re)cortes e nos prender num monólogo de uma hora que passou num piscar de olhos.
Incansável presença que não te cansa, tamanha variação de ritmos e atmosferas, tamanha presença e energia e nuances que traz. Impressionante e cheiode verdade. Gosto muito. Não sou do tipo imparcial.
Ficha técnica
Pequeno Monstro
Direção: Andreia Pires
Dramaturgia e Atuação: Silvero Pereira
Cenografia: Dina Salem Levy
Desenho de Luz: Sarah Salgado e Ricardo Vivian
Trilha Sonora Original e Desenho de Som: Arthur Ferreira
Figurinista e Criação Audiovisual : Alice Cruz
Assistência da Cena: Tina Reinstrings e Juracy Oliveira
Operação de Luz: Ricardo Vívian
Operador de Som e Projeção: Gabriel Salsi
Contrarregra: Iuri Wander
Designer Gráfico: Karin Palhano
Fotos: John Ramatis
Quintal Produções
Direção de Produção: Verônica Prates
Coordenação de Projetos: Valencia Losada
Produção Executiva: Camila Camuso e Bruno Mros
Clarissa Brittes integra o Coletivo Crítica Expandida da Cena.
As opiniões emitidas pela autora não expressam necessariamente a posição editorial da Matinal.