“Tínhamos vontade de fazer um humor diferente do que fazíamos no ‘Pasquim’. Achamos que o jornal estava ficando muito politizado, queríamos um humor mais descompromissado e tínhamos limitações no jornal, não dava pra fazer uma revolução ali. A deles já tinha sido na década de 70”. Hubert
A fala do humorista e cartunista carioca Hubert, do próprio Pasquim e depois d’O Planeta Diário, que viria a ser o gérmen do Casseta & Planeta, reflete bem o espírito de uma época (ou década). E a trilha aberta pelo hebdomadário ipanemense (com redação em Botafogo) inspirou muita gente, inclusive aqui no Sul-maravilha. Primeiramente o coletivo que criou o semanal Pato Macho, com expoentes como Luis Fernando Verissimo, Luiz Carlos Felizardo, Cláudio Ferlauto e outros [1], que, armados pelo riso, durante um curto período, de abril a julho de 1971, em plena ditadura, “abalaram a Província de São Pedro”.
Também filho da mesma vertente, numa vibe mais pós-moderna, outra publicação sulina bebeu da influência carioca, já numa segunda geração de escracho jornalístico, justamente do sucedâneo do Pasquim citado (e criado) por Hubert & Cia [2], o carioca Planeta Diário, nascido em dezembro de 1984. Cerca de oito meses depois, em agosto de 1985 – portanto, há cerca de 40 anos –, surgia o primeiro número do tabloide humorístico The Porto Alegre Times.
Similarmente ao oitentista periódico fluminense, com um padrão de humor gráfico baseado na sátira aos jornais ditos sérios, reproduzindo o formato tradicional, mas com conteúdo jocoso, a invenção bonfiniana (com redação no Menino Deus), criação de um coletivo noticioso, tendo como jornalista (ir)responsável Juremir Machado da Silva, acompanhado de Cyro S. Martins Filho, Ricardo Baptista Carle e outros debochados parceiros, usava o bordão ‘TODAS AS NOTÍCIAS PUBLICADAS NESTE JORNAL SÃO COMPLETAMENTE FALSAS’ (assim mesmo, em caixa alta!).
Desse modo, saído das rotativas da RBS como um produto sério, o conteúdo era risível, uma mistura de reportagens, ensaios fotográficos (também com imagens recortadas de revistas antigas), notícias de jornal, quadrinhos, compondo um mosaico hilário de uma sociedade recém-liberta da ditadura de João Figueiredo [3], passando pela eleição indireta à presidência (e morte) de Tancredo Neves [4] e pela posse de Sarney [5] (com seu bigode “tudo pelo social’). Seria o ano da última eleição indireta, fruto da Emenda Dante de Oliveira, que perdeu, mas ganhou… e tempo de uma censura velada, embora ainda existente, o suficiente para abrir brechas para um respiro maior logo depois, em 1988, com a Constituição Cidadã.
Pasquim pós-moderno, o periódico gaúcho exibia manchetes como Pinochet cai [6], que, na página 05 da edição inaugural (agosto), na seção Internacional, reportava a queda do generalíssimo, “segundo fontes da saudade”, à saída da missa das 18h, na Catedral Metropolitana de Santiago, onde se estatelou na escadaria. Do fato, é curioso o relato veríssimo de um popular santiaguino que quase foi atingido pelo ditador cadente: “Yo me encagacè todo, porque yo miré para arriba e solamente avisté aquél monte de mierda que desabava sobre mi”.
Já a edição de setembro mancheteava Reagan invade a Nicarágua, quando é relatado que Reagan II [7], a Missão, invadiu o país. Assim, “Segundo uma fonte fidedigna de boatos, o presidente apresentava sintomas típicos de embriaguez, e, sozinho, atravessou a fronteira aos gritos de ‘Esta América Central é muito pequena para nós dois’, o que ocasionou princípio de pânico entre os guardas nicaraguenses da Nicarágua. Tão logo soube do ocorrido, o Comandante Zero (ex-recruta idem) convocou todos os seus principais assessores militares para uma reunião dançante”.
Em outubro, o furo exclusivo é Sarney renuncia, explicado na página 12 em Furata (desculpe o nosso furo [8]) “Onde lê-se ‘Renuncia’, na capa, leia-se ‘Anuncia’. O presidente José Sarney anunciou ontem, em Brasília, que não participará do Congresso Punk Americano, para o qual fora convidado, pois teme que descambe para a punk-adaria”. Como contraponto, uma chamada menor: Faccioni denuncia frades na eleição (“Victor Faccioni, conceituado candidato pedessista da capital gaúcha, declarou ontem, sob intensos aplausos da população oposicionista, que houve frade na contagem dos votos que deram vitória a Krieger de Mello, em 15 de novembro de 1985. [9] Segundo ele, último colocado depois de Raul Ponte Rio-Niterói, Alceu Collares de Miçangas e Carrion Júnior, Zico, Falcão e Sócrates, o resultado é injusto e demonstra que o frade existiu e é milagroso pelo jeito” (p. 03).
Já na derradeira edição, de novembro, a chamada principal era Escândalo nas eleições: candidatos compram votos nas escolas, aparentemente sem matéria correspondente (a cara do jornal!), falha da edição ou da cópia do jornalista e crítico de cinema Goida, que, desprendidamente, doou a sua coleção para o Museu Hipólito José da Costa [10], embora não haja registro de nenhuma página faltante.
Mas como toda imprensa, o jornal não vivia só de notícia principal. O miolo oferecia uma miscelânea de informações culturais e politicamente incorretas que, na época, faziam corar uma freira, hoje tornariam insones os wokes, a começar pelas ações da Frelico (Frente de Libertação do Corpo), “o mais ativo grupo de guerrilha sexual em atividade”, que promovia um Ato Púbico, no Largo da Prefeitura, realizado através de seus braços políticos legalizados: “as tendências BABALU (Bastante Baseado na Luta), LIBELUBO (Liberdade e Luta para as Borboletas), AVATRAN (Avançar Transando), PRAPRAPRA (Prazer, Prazer & Prazer) e TAÍ (Eu fiz tudo pra você gostar de mim)”.
E como tudo que é bom dura pouco, cumprindo a profecia de Millôr Fernandes expressa no primeiro número do Pasquim, de que “Um jornal verdadeiramente independente não passa dos três meses”, dezembro chegou, e o jornal parou de circular…
Medido pela régua do tempo, no entanto, vanguarda que fora na época, já em seu primeiro número parecia trazer, aos olhos de hoje, um prenúncio histórico. Na página 02, a Coluna do Jair, preenchida toda ela com a manifestação equestre “Hiiiiihóóóó”, com um bloco explicativo ao final: “Jair é o híbrido resultante do cruzamento do Cavalo (Equus caballus gwelini) com o Asno (Equus asinus africanus), ou seja, é um BURRO”. Mas é engano, em vez de um ex-presidente, tratava-se do esculacho ao governador da época, Jair Soares [11].
*
[1] O time é completado por Sérgio Rosa, Assis Hoffmann, Renato D’Arrigo e Antônio Aiello.
[2] Reinaldo e Claúdio Paiva, também vindos do Pasquim.
[3] General e presidente do último período da ditadura militar brasileira, de 1979 a 1985.
[4] Presidente da República eleito, mas não empossado devido a problemas relacionados à saúde, 1985.
[5] Sucedâneo de Tancredo Neves e presidente do Brasil de 1985 a 1990.
[6] General e ditador que governou o Chile de 1973 a 1990.
[7] Ator e presidente dos EUA, de 1981 a 1989; o ‘Tramp’ da época.
[8] Termo utilizado em sua duplicidade de significado, como informação exclusiva e como situação ruim.
[9] A informação vira de ponta cabeça o resultado da primeira eleição municipal pós-ditadura militar, já que o vitorioso foi Alceu Collares, sendo Krieger de Mello justamente o último colocado no pleito.
[10] Instituição pública que gratuitamente cedeu 64 arquivos em formato JPG da edição do jornal.
[11] Jair Soares era o governador do Estado. Ele foi eleito em 1982, na primeira eleição direta pós-ditadura, candidato pelo Partido Democrático Social, originário da Arena, que apoiava o regime militar.
Breno Serafini é doutor em Letras pela UFRGS. Autor dos livros Millôres Dias Virão (ensaio – Libretos, 2013); Bichos de Todos os Reinos (poesia infantil – Edições do Autor, 2015 – ilustrado por Moa); Colloríssimo – a coroação e o destronamento de Collor segundo Verissimo (ensaio – AGE, 2016); POAlaroides urbanas – uma ode visupoética a Porto Alegre (fotografia & texto, Editora Parangolé, 2022); e Humor em tempos de cólera: a crônica de Gregório Duvivier e o (des)governo Bolsonaro (Parangolé, 2025). Mantém as páginas @poalaroides e @brenoserafini no Instagram e Breno Serafini no Facebook
As opiniões emitidas pelo autor não expressam necessariamente a posição editorial da Matinal.