Pular para o conteúdo

Chico Disco a Disco: 11 canções de 1978

Parêntese #305

Chico Disco a Disco: 11 canções de 1978

Confira todos os textos da edição #305

Nenhum disco de nosso autor é irrelevante. Na pior das hipóteses, mesmo que o conjunto não seja marcante ou tenha material de importância transcendental, vai-se encontrar uma pepita de ouro ou duas, e jamais qualquer pedra falsa. É o caso do disco de 1978, tendo na capa um retrato de um Chico ainda jovem, sobre o fundo de uma samambaia daquelas de vencer exposição competitiva.

São 11 faixas. Três delas compõem a trilha da Ópera do malandro, escrita neste mesmo ano (e a ser comentada em texto à parte): “O meu amor”, um duo de vozes femininas; “Homenagem ao malandro”, talvez a canção mais famosa relativa ao tema da peça; e a maravilhosa “Pedaço de mim”, uma das mais comoventes canções de separação jamais concebidas no cancioneiro popular, não apenas brasileiro.  

“O meu amor”, letra e música de Chico, corresponde na peça a um duelo entre as personagens Teresinha e Lúcia, ambas ligadas a Max, a figura mais notória do malandro mencionado no título geral. A primeira é a esposa oficial e vem de classe mais alta que Lúcia; as duas protagonizam a cena em que argumentam, como na letra da canção, suas intimidades e virtudes específicas na relação com o homem, para disputá-lo, simbolicamente. É um bolero nas regras da arte, inclusive no tema amoroso, ainda que, como parte da narrativa atravessada por algum deboche, também aqui as cantoras ostentem algum ar de teatro de revista.  

Cada uma das personagens tem duas partes em solo, e as duas cantam em uníssono o estribilho, bem simples: “Eu sou sua menina, viu? / Ele é o meu rapaz / Meu corpo é testemunha / do bem que ele me faz”. Todos os solos começam com a mesma frase, “O meu amor / tem um jeito manso que é só seu”; dali em diante, cada uma argumenta com sua experiência, com rimas próximas, emparelhadas (louca – boca, sentidos – ouvidos, maluca – nuca e rodeios – seios) e sempre incidindo numa parte do corpo como segundo termo, ou rimas alternadas ( arrepiada – beijada, indecentes – dentes, malfeita – deita, brasa – casa), e sobra tempo para rimas internas (calma – minh’alma, comigo – umbigo) que alternam com repetições (coxas – coxas, corpo – corpo), tudo sempre no mesmo campo semântico do corpo e do sexo.

A “Homenagem ao malandro”, que também analisaremos com maior detalhe no texto sobre a peça, resume bastante o ponto de vista autoral sobre o tema: o malandro antigo não existe mais, no presente, muito embora a ação se passe no tempo de Getúlio; agora o malandro é, como diz a letra, “candidato a malandro federal”, sugerindo que a ética do “jeitinho”, o universo da contravenção e de coisas a ele associadas na cultura brasileira fazia agora parte do universo da política formal. Isso sem prejuízo do fato de ainda haver malandro à antiga, mas este “trabalha / mora lá longe e chacoalha / num trem da Central”.

Era o ano de 1978, e Chico, antena atenta, já via o que começava (ou se consolidava) como uma prática que ficaria evidente, antes em atividades relativamente amenas, como o contrabando ou a prostituição, hoje com drogas e milícias. Um samba em formato de crônica, que até Moreira da Silva gravaria, pintando o relato com uma camada a mais de autenticidade. 

A terceira das canções da peça presentes no disco de 78 é uma obra talvez insuperável como registro emocional da separação. A cena, no enredo da peça, mostra a separação entre Max e Teresinha, mas numa dicção muito superior, em lirismo e em tensão dramática, ao que se desenvolvia até então na história da peça.