“E aí, pessoal, eu estou com duas turmas do ensino médio e a gente estava falando um pouco sobre mudanças climáticas. Agora eu vou perguntar pra essa turma aqui: ‘E aí rapaziada, vocês acham que a agricultura e a pecuária podem ser a solução das mudanças climáticas?'”
Ali, em frente a uma câmera frontal de um smartphone, o jovem agrônomo César Augusto Paim gravava o encerramento de uma palestra para estudantes do ensino médio de duas escolas públicas de André da Rocha, um pequeno município na região serrana do Rio Grande do Sul.
Sob um galpão improvisado na ExpoAgro, uma tradicional feira agropecuária, rodeado por bovinos enfileirados em baias, ele discorreu sobre as diferentes raças dos animais, além de ações de sustentabilidade e tecnologias no campo, citando práticas de reaproveitamento de resíduos de origem animal, por exemplo. Antes de ser aclamado por um coro de ‘sim’, ele brincou: “Concordem se fui convincente”.

A palestra de Paim a um grupo de 42 estudantes fez parte da atividade “Vivenciando a prática” e marcou a estreia da associação De Olho no Material Escolar (Donme) no município. Criado há quatro anos por um grupo de mães ligadas ao agro, o grupo quer mostrar para alunos e professores a “verdadeira imagem do campo”, que diverge muito do que é ensinado dentro da sala de aula, segundo um relatório encomendado pela própria entidade que analisou livros didáticos. Além das palestras com estudantes, a Donme quer mudar o que considera uma visão erroneamente negativa sobre o agronegócio em outras duas frentes: por meio do programa “Mestres do Agro”, que busca “atualizar” professores sobre os avanços no campo, e pela mudança nos livros didáticos.
O Rio Grande do Sul é o segundo estado onde a atuação da associação está mais capilarizada, depois de São Paulo. Já são 18 cidades envolvidas nas palestras da Donme, que alcançou os extremos do estado nos últimos três anos. A maioria das atividades ocorre em feiras agrícolas ou em formato de visita a fazendas modelos de empresas associadas ao projeto. São 3,7 mil alunos e professores impactados no RS entre 2024 e 2025, conforme a própria entidade.
“Eu não sabia do projeto, é uma novidade”, disse Marina Galvão dos Santos, professora de História na Escola Estadual de Ensino Médio Amantino Vieira Hoffmann, de André da Rocha, cujos alunos participaram da atividade. Ela conta que o único problema que encontrou nos livros é a desvalorização do agronegócio e do trabalho no campo. “Não, errado não, mas desvaloriza”, opinou.
A aproximação da Donme com escolas acontece por meio dos sindicatos municipais e suas comissões internas. No caso de André da Rocha, a organização da atividade ficou a cargo da Comissão de Mulheres do sindicato rural da cidade, referência para outros cinco municípios vizinhos. Ainda que seja o menor município em população do RS, ele é o maior da região na divisa entre Serra e Campos de Cima da Serra em território e produção agrícola.
Silvana Rigo, produtora rural e diretora-secretária do Sindicato Rural de André da Rocha, conheceu a Donme na Expointer, uma das maiores feiras de agropecuária da América Latina, sediada em Esteio, região metropolitana da capital gaúcha. “Quando vi a palestra, fiquei encantada. Pensei: ‘É disso que a gente precisa’”, conta Rigo. A pedido dela, o sindicato se associou à associação e, naquele 26 de setembro, sexta-feira, realizava sua estreia junto a Donme no município de pouco mais de 1,1 mil habitantes.

A associação afirma ser financiada apenas por associados – de pessoas físicas, jurídicas e professores –, que pagam mensalidades que partem de R$ 180 até a um valor espontâneo anual acima de R$ 2 mil.
“A nossa raiz é o agronegócio, começamos por lá. Porém, hoje nós não somos uma associação do agronegócio. Somos uma associação da educação”, explica Michele Birck, diretora de Comunicação da associação e produtora rural em Não-Me-Toque, cidade da região Norte, conhecida por sediar a Expodireto, outra grande feira de agropecuária que ocorre no interior gaúcho. Dedicando mais de 20 horas semanais ao trabalho voluntário, Birck representa a associação em feiras, painéis, podcasts e entrevistas no Rio Grande do Sul.
Mestres do Agro
Depois de usar São Paulo como projeto piloto, a De Olho busca uma parceria com o governo de Eduardo Leite para o programa “Mestres do Agro”.
“É a oportunidade de professores estarem diante de grandes mestres do agronegócio, atualizando o seu conhecimento. São pesquisadores da ESALQ, Embrapa, FGV, Insper, Instituto de Zootecnia, Ipea, entre outros”, detalha Birck.
A ideia, no entanto, não saiu do papel. A Donme alega que ainda não conseguiu agenda com a secretária de Educação Raquel Teixeira, titular da pasta desde 2021. “Através de uma associada, nós conseguimos o auditório do Palácio da Justiça, em Porto Alegre, para fazer a atividade. Acho que são 190 lugares. Só que, infelizmente, a gente não conseguiu a agenda com a secretária de Educação”, disse Birck.
Procurada, a Secretaria de Educação afirmou que desconhece a Donme e que os trabalhos nas escolas estaduais “são desenvolvidos em rede, sempre alinhados com as coordenadorias regionais”.
As secretarias de Educação e Agricultura, assim como os gabinetes do governador Eduardo Leite (PSD) e do vice-governador Gabriel Souza (MDB) afirmaram que nunca estiveram reunidos formalmente com nenhum representante da De Olho no Material Escolar desde 2021. Os posicionamentos acerca das agendas foram fornecidos em setembro de 2025 por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI).
Por enquanto, o único estado a abrir portas para uma parceria com a Donme foi São Paulo, governador por Tarcísio de Freitas (Republicanos). Desde 2024, a Donme informa que 220 profissionais da rede estadual (professores, supervisores, diretores e especialistas em currículo do Programa Educação Profissional Paulista) fizeram a formação “Mestres do Agro”. O projeto foi estendido às secretarias municipais atendendo, posteriormente, outros docentes.
Neste ano, a Donme foi uma das três entidades contempladas pelo prêmio Darcy Ribeiro de Educação, oferecido pela Câmara dos Deputados. A entidade foi indicada pela deputada federal Adriana Ventura (Novo/SP). Cada parlamentar pode indicar um nome ao prêmio. A escolha final é feita pelos membros da Comissão de Educação em reunião especial.
Foco nos livros didáticos
A preocupação das mães da De Olho no Material Escolar começou durante a pandemia ao acompanhar as aulas remotas dos filhos e logo se transformou em movimento organizado para fiscalizar o que era ensinado em sala de aula. Uma das líderes é a produtora rural Leticia Jacintho, hoje presidente da Donme.
Colunista de educação na BandTV, Jacintho cumpre uma agenda intensa em Brasília para acompanhar as discussões na comissão especial do novo Plano Nacional de Educação (PNE) 2025-2035, o conjunto de diretrizes que norteia metas e estratégias na educação nacional.
Na pauta da Donme, estão sete prioridades elencadas em uma cartilha divulgada pela associação (leia aqui) em que a entidade deixa claro os seus objetivos. Entre as propostas para o PNE, está aplicar uma prova em professores “inspirada na experiência bem-sucedida do Exame da Ordem dos Advogados do Brasil”, aumentar a participação da sociedade na indicação de avaliadores responsáveis pela revisão dos livros e criar uma etapa em que órgãos e instituições científicas auditem “de forma independente” os conteúdos dos livros antes da publicação. A redação do plano está sendo discutida na comissão especial sobre o PNE na Câmara dos Deputados e deve ser votada na terça-feira (9). A previsão é ir a plenário ainda neste ano.
Enquanto participa dos debates públicos do PNE, a Donme afirma estar junto das maiores editoras de livros pedagógicos, “atualizando” os livros didáticos das escolas públicas brasileiras para “corrigir” informações erradas e enviesadas que têm pouco ou nenhum embasamento científico, segundo a entidade.
Denúncias sobre conteúdos didáticos chegam semanalmente até a Donme, afirma a diretora, por meio de formulários. “Nosso time técnico analisa, dá um parecer sobre aquilo e fazemos a devolutiva para as editoras, explica. “A maioria acolhe. Depende muito das editoras. Para ser sincera, temos um relacionamento bom com todas elas. Nós também temos editoras que nos procuram para que a gente faça a revisão”, diz. “Nós temos uma relação muito próxima com quase todas as editoras.”
“Uma história da Chapeuzinho Vermelho andando por uma floresta que não tinha mais nenhuma árvore. Eram todas árvores cortadas. Não é assim, né? Se a gente for pensar, hoje nós temos no Brasil um território imensamente protegido e o lugar onde há mais proteção é dentro das propriedades rurais”, cita como exemplo de conteúdo desatualizado encontrado nos livros.
A diretora parece desconhecer dados do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) que mostram que mais da metade do desmatamento na Amazônia, por exemplo, ficou concentrado em áreas de uso privado entre 2023 e 2024. No Brasil, a conservação e o resguardo de vegetação nativa em propriedade privada é responsabilidade legal do proprietário da posse rural. Desde 2012, a Reserva Legal (RL) prevista na lei do Código Florestal impõe limitações ao uso e exploração econômica nestas áreas, tornando ilegal, por exemplo, desmatar área de reserva legal para fins de plantio ou criação de gado.
“Outra coisa é colocar o Brasil como maior consumidor de defensivos agrícolas. O país faz três safras por ano. Cada vez que ele faz uma safra ele precisa usar o defensivo. [...] Porém é um defensivo que ficou 10 anos até ser aprovado. É algo que está sendo pesquisado e trabalhado para que não faça mal às pessoas. Como vou comparar a quantidade que o Paraguai usa? Ou seja, não tem o contexto todo. É uma informação pela metade”, reclama Birck. Segundo ela, na maioria das vezes, as fontes destes conteúdos vêm de blogs, textos jornalísticos ou de ONGs, não considerados como “confiáveis” por ela. Birck não detalhou a qual agrotóxico ela se referia – o agronegócio ainda usa o termo mais brando para nomear os produtos.

Neste caso, os dados da FAO, a agência da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura, desmentem a visão da Donme sobre o uso de agrotóxicos. Segundo o último levantamento de 2022, o Brasil é o campeão no uso de agrotóxicos. O consumo no país supera em 70% o dos Estados Unidos, o segundo colocado. Durante a COP30, o país liberou 30 novos agrotóxicos – 16 deles classificados como produtos “muito perigosos para o meio ambiente” e os demais “perigosos para o meio ambiente” (classe 3).
Juliana de Andrade, professora da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), com experiência de oito anos como avaliadora do programa nacional de livro didático, considera “impossível” a existência de erros de conteúdo no material didático que chega nas escolas via Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), considerado por ela a maior política pública em orçamento do governo federal. O máximo que se pode encontrar, segundo ela, é erro de ortografia. “Desde a década de 1990 é feito um esforço para evitar erros, distorções e anacronismos”, explica.
A pedido da Matinal, Andrade avaliou um relatório encomendado à Fundação Instituto de Administração (FIA), uma consultoria privada sem qualquer relação com a Universidade de São Paulo (USP), como dá a entender no documento da Donme, que avaliou livros didáticos. Segundo a especialista, o documento contém erros técnicos de metodologia, erros de informação ou de indução ao erro. O relatório cita que o PNLD foi promulgado em 2017 quando, na verdade, foi criado em 1985. Outro ponto levantado pela docente é em relação aos livros escolhidos para a análise. "Eles dizem que a pesquisa é feita com os livros recentes. Recentes de quando? Cinco anos, quatro anos? É uma falha técnica uma pesquisa encomendada não dizer o recorte."
Campo minado
Outro ponto contestado pela especialista é o argumento de que o conteúdo dos livros seria “mais autoral do que científico”. Há três décadas é exigência do edital do PNLD que quase 90% do conteúdo de um livro seja autoral, rebate Andrade. Mas o conceito de autoral se refere ao processo de didatização de um conhecimento, ou seja, transpor um saber científico original para um conteúdo didático estruturado e acessível para uma criança de oito anos, por exemplo. Não é uma oposição à ciência, mas como torná-la mais acessível.
“Penso que a encomenda deste relatório foi para induzir a ideia de que o livro precisa ser consertado porque ele tem o viés ideológico e político. Desde que o PNLD foi instituído, em 1985, há um currículo e há temas que não podem deixar de serem abordados porque sua ausência fere os princípios constitucionais, fere o Estatuto da Criança do Adolescente e fere os princípios dos direitos humanos”, diz. Andrade considera o uso do relatório pela Donme como uma “estratégia política” para criar uma incerteza sobre a consistência e coerência dos livros didáticos.




Clique nas imagens para ampliá-las | Fotos: Isabelle Rieger
É um discurso muito parecido com o Escola Sem Partido, direcionado a quem não entende como funciona o processo do material didático, e não às editoras que fazem o livro, destaca a professora. “Financeiramente, é mais vantajoso as editoras seguirem o edital do PNLD de cabo a rabo do que ficar num relatório sem base de dados”, afirma Andrade. Caso descumpra alguma regra, a editora poderia ser penalizada pelo governo.
Para terem seus livros em uso em sala de aula, as editoras se inscrevem por meio de licitações abertas pelo Ministério da Educação e Cultura, por meio do Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD). Elas devem atender a critérios pré-estabelecidos nos editais, como características das obras e definições pedagógicas.
Após o prazo de inscrição, o Ministério da Educação (MEC) garante que todas as obras inscritas passam por um processo de avaliação pedagógica de profissionais da educação, selecionados pela própria pasta. Esse trabalho leva, em média, seis meses. Com o leque de material aprovado e revisado, cada escola pode escolher o livro da sua preferência.
A Donme afirma que não busca esclarecimentos das “inadequações” junto ao MEC, se restringindo apenas a “devolutivas” dos seus achados às editoras. “Eu creio que é uma forma de levar conhecimento científico direto para quem está escrevendo. Muitas vezes, a gente erra por não conhecer. Eu mesma sou produtora e, para a gente se atualizar no agro, é difícil. Cada dia uma tecnologia nova. Então foi a forma mais direta que nós achamos”, explicou Ana Nery, vice-presidente da associação.
Para Vera Peroni, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) que há 25 anos coordena um grupo de pesquisa que estuda a relação entre o público e o privado no ensino, a atuação da De Olho no Material Escolar é uma disputa pelo controle da escola pública, que concentra mais de 80% das matrículas da educação básica. Longe de ser uma novidade no contexto da educação brasileira, ela vê com preocupação o modo como a sociedade, em geral, percebe a atuação destes movimentos ligados à pauta de ensino. “Eles estão disputando o controle da escola pública, que está no conteúdo, na gestão, na formação de professores”, detalha.
Peroni distingue em dois tipos de organizações: as que atuam no controle da educação ou que adentram no ensino por meio de contratos públicos, via terceirizações . “Alguns movimentos abrangem os dois, com convênios que têm fins lucrativos, mesmo dizendo o contrário. Outros trabalham só com a questão do controle social, como levar o seu projeto para dentro de uma escola pública”, explica. A pesquisadora enxerga a Donme neste segundo grupo.
“As pessoas não conseguem perceber que há projetos de educação em disputa. Essa é a grande questão. O privado entra em algumas brechas. Se você ver só um pedacinho, pensa ‘puxa, como eles estão preocupados com a educação’, mas tem que ver qual é o projeto deles por trás dessa intenção”, explica.
A disputa pelo imaginário do agro no Brasil também adentrou no legislativo gaúcho. O deputado Luciano Silveira (MDB) criou um projeto de lei para instituir o programa Escola Amiga do Agro em toda a rede básica de ensino do gaúcha, tanto pública quanto privada. O PL 230/2024 teve parecer favorável na Comissão de Constituição e Justiça em 4 de novembro e aguarda votação na Comissão de Educação, Cultura, Desporto, Ciência e Tecnologia.
O programa quer "eliminar distorções sobre as funções socioeconômicas da agropecuária" e "conscientizar" sobre a realidade do agronegócio e sua relação com o meio ambiente, a sustentabilidade e a segurança alimentar. Se aprovado, o programa seria implementado por convênios e parcerias com instituições públicas e/ou privadas, independentemente de serem ligadas ao setor da educação. Pode ser mais uma porta de entrada para a De Olho no Material Escolar.
* Esta pauta foi selecionada pelo 7 º Edital de Jornalismo de Educação, uma iniciativa da Jeduca e da Fundação Itaú.