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✉️ A noite em que cheguei sangrando no hospital

Tudo É Gênero # 29

✉️ A noite em que cheguei sangrando no hospital
A criminalização do aborto está por trás de diversas violências contra as mulheres | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

A noite em que cheguei sangrando no hospital

Desci do carro na porta da emergência enrolada em uma toalha para segurar o sangramento, que já parecia controlado. Era uma noite de agosto de 2014, pleno inverno, mas não lembro se fazia frio. Eu tremia de dor.

Não demorei para ser atendida. Expliquei que, uma semana antes, eu tinha recebido o diagnóstico de aborto espontâneo retido. 

Aborto.
Espontâneo.
Retido.

Ou seja, minha gestação de seis semanas havia sido interrompida de forma natural e silenciosa. Descobri numa sala de ecografia, onde cheguei faceira, acompanhada do meu marido, com a expectativa de ouvir pela primeira vez os batimentos cardíacos do nosso filho. O que ouvimos foi uma pedrada da boca de um médico: “Não tem nenê nenhum aqui”. 

Nunca tinha conhecido um médico sem coração.

Quando a interrupção foi confirmada, minha obstetra me deu duas alternativas. Uma era marcar a curetagem, uma raspagem da parede interna do útero para remover o material que restou da gestação. Ou eu poderia esperar meu corpo expelir o que ele havia retido. Apesar de a curetagem ser um procedimento relativamente simples, é uma cirurgia. Optei por respeitar a espontaneidade do processo abortado pelo meu próprio corpo.

Minha médica avisou que o sangramento poderia ser intenso. E assim foi, intenso e acompanhado de muita dor – que, três anos depois, descobri ser a mesma das contrações do trabalho pré-parto. 

Na emergência obstétrica da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, fui recebida por uma jovem plantonista que me examinou com cuidado e atenção. Fez um exame de toque para saber se meu corpo já tinha expelido tudo o que havia retido. Descobrimos que não e, portanto, teria de me submeter à curetagem, aquela mesma que eu quis evitar em um primeiro momento. Como eu não estava com o mínimo de horas de jejum necessário, precisaria ser internada no hospital para ficar em observação.

Eu achava que minha noite não poderia piorar. Mas ela piorou muito. E piora a cada vez que revisito esse episódio e me dou conta de coisas que até então não compreendia.

Eu estava sendo internada pela primeira vez na minha vida, aos 34 anos, recém-completados, enlutada por um bebê planejado que era tratado como “material” ou “restos de um aborto”. Meu marido não poderia me acompanhar. “Apenas pais de bebês vivos”, me disse uma enfermeira. Sem bebê, sem pai.

Sem bebê, sem mãe. E naquela emergência, uma mulher sem filho na barriga estava rebaixada a uma categoria que merecia um outro tratamento. Não tinha direito a companhia, acolhimento, nada. Antes de ir para um leito, sem saber exatamente o que ia acontecer, me puseram sentada numa cadeira

Com o celular trancado num armário por orientação da equipe, fiquei sem comunicação com minha família. Nunca na vida tinha me sentido tão desamparada.

No meio da noite, já na cama, lembro de uma médica chegar na companhia de outros jovens enfermeiros ou médicos residentes – não sei, porque ninguém se apresentou, ou eu simplesmente não tive condições de entender devido ao efeito dos analgésicos. Ao contrário da plantonista que me atendeu com cuidado quando cheguei, essa mulher enfiou a mão em mim como se meu útero fosse uma maquete de demonstração que ela pudesse virar de um lado para o outro. Dessa dor eu lembro bem. Não há analgésico suficiente.

Mas a maior tortura daquela noite foram os sons dos batimentos cardíacos dos bebês vivos que eram monitorados ao meu lado. Sim, me deixaram sozinha numa cama ao lado das gestantes e seus acompanhantes. Minha dignidade naquele momento era tão frágil como a cortininha que me separava das outras pacientes. 

Já de manhã, a curetagem foi realizada. Fui para casa e me recuperei bem. Fisicamente.

Emocionalmente, ainda sinto uma ferida mal cicatrizada aqui dentro. Com o tempo, contar essa história vai ficando menos doloroso. Faz 10 anos que eu rascunho esse relato, sem nunca finalizá-lo – até agora.

Na semana passada, li sobre uma mulher de 46 anos que morreu após quase dez horas aguardando atendimento em um hospital de Olinda, onde chegou sangrando. Paloma Alves Moura sofria com endometriose. Segundo amigos e parentes, foi negligenciada porque a equipe médica achou que ela tinha provocado um aborto.

A notícia me levou de volta à emergência da Santa Casa. Uns anos atrás, ao compartilhar com uma amiga o que tinha me acontecido naquela noite, ela me disse: “acho que desconfiaram que tu provocou o aborto”.

Isso nunca tinha passado pela minha cabeça, mas na hora entendi que eu podia ter sido vítima da criminalização do aborto mesmo não tendo provocado um. Como defensora da legalização da prática, fiquei com ainda mais raiva.

E se eu tivesse provocado um aborto? E se Paloma tivesse provocado? Não cabe a nenhum profissional da saúde julgar e condenar – no caso de Paloma, com sentença de morte. Me sinto até constrangida em comparar a minha história à dela. Mas é impossível não pensar que poderia ter sido eu. O mesmo pensamento ocorreu à influenciadora Mariana Almeida. Ela contou que, em uma crise de dor provocada pela endometriose, recusou-se a ir ao hospital com medo de ser mal-interpretada. Agora ela sabe que o fim de Paloma poderia ter sido o seu também.

Apesar do desfecho extremo e trágico, o que aconteceu com Paloma é menos comum do que as violências menores cometidas contra mulheres em situações semelhantes à que eu vivi e que tantas outras mulheres vivem, seja porque perdem seus bebês ou recorrem a abortos clandestinos – ou mesmo aquelas que sofrem com endometriose ou outras doenças, porque a negligência com a dor das mulheres é um fato comprovado pela ciência.

Na semana em que a notícia de Paloma me entristeceu, o voto do ministro Luís Roberto Barroso pela legalizaçao do aborto em um processo julgado no Supremo Tribunal Federal me encheu de esperança. A mesma esperança das mulheres que conseguem romper o silêncio sobre qualquer violência que sofrem e que me moveu a compartilhar minha experiência: a esperança de salvar a todas nós.