Nesta terça-feira, 11 de novembro, a programação da 71ª Feira do Livro de Porto Alegre sedia o lançamento de um novo livro com 50 crônicas inéditas do escritor e jornalista negro José Paulino de Azurenha, que assinava sob o pseudônimo de Leo Pardo. O encontro ocorre às 16h30, no Clube do Comércio (Andradas, 1085 - 2°andar), e conta com participações especiais, como a de Lilian Rocha, Marcelo Martins Silva, Luís Augusto Fischer e Brenda Vidal.
Interessado na obra de Azurenha, Fischer conversou com Alex de Cassio da Silva, editor de dois volumes com as crônicas do autor, publicadas pelo selo independente de Porto Alegre estúdio Mar edições. Confira abaixo.
Luís Augusto Fischer – Como foi teu encontro com o texto do Paulino Azurenha? Foi amor à primeira vista?
Alex de Cassio – Foram dois encontros diferentes. Na época que eu cursava Letras na UFRGS, quando frequentei a disciplina Literatura Sul-rio-grandense, li a novela Estricnina, que ele escreveu com o Mario Totta e o Souza Lobo. Salvo engano, o livro não fazia parte da bibliografia obrigatória, mas o nome dele aparecia nas conversas sobre um conjunto de obras dos anos 1920 e 1930 que estavam meio perdidas e fora de catálogo, como Trem da serra, As loucuras do doutor Mingote, Frida Mayer, entre outras. Então, li essa primeira vez como quem observa uma descoberta arqueológica, com respeito e curiosidade. Li com gosto, mas ainda sem amor.
Anos depois, em 2021, com uma editora independente saindo do papel, quando conversamos sobre a possibilidade de que tu coordenasses uma coleção que tentaria reeditar algumas dessas obras, aí a coisa foi diferente. Tratava-se, a partir daquele momento, de um texto que eu queria ver vivo e a leitura se misturou um pouco com a ânsia da edição, de conseguir ler o lado de trás do texto. Consegui acesso a um exemplar do Semanário de Leo Pardo na Biblioteca Pública e fotografei as páginas para poder ler em casa, digitar e atualizar a ortografia, em parceria com a Aline Gonçalves.
Mas acho que o encantamento com o texto foi chegando gradativamente quando consegui relaxar dessa tensão e perceber a sensibilidade singular com que ele abordava todos os temas, do mais cosmopolita ao mais comezinho (ele conseguia escrever uma crônica sobre a fumaça da xícara de chá, por exemplo), e encontrava sempre alguma coisa não tão fácil de ver para mostrar a quem lia. Ele tinha temperamento de poeta. Embora a produção do Azurenha nesse gênero seja pequena (encontrei uns oito ou nove sonetos nos jornais durante a pesquisa), o texto dele parece se relacionar pouco com a literatura em prosa de seu tempo, comprometido que estava com o rebuscamento e a rigidez da forma que desse sustentação ao lado humano e sentimental, com descrições impressionistas amplas e com uma tendência para a melancolia e para a subjetividade.
Por tudo isso, suas crônicas são bastante pessoais, mesmo quando não aparentam diretamente. O conjunto de textos forma uma espécie de índice biográfico. E é importante sublinhar que ele era um homem negro, escrevendo no jornal de maior circulação do estado (que ele ajudou a fundar) na virada do século XIX para o XX! É por essa lente que ele observa a vida. Então, houve um esforço de reconstituir o máximo possível da sua história. Já que ele era discreto na vida social, registros e memórias foram perdidas ou apagadas. Esse material de pesquisa está todo reunido na reedição do Semanário.
O segundo volume de crônicas que editamos, 50 crônicas inéditas do Leo Pardo, traz algumas marcas surpreendentes para o texto dele. Como tem muito material da juventude, aparecem com mais ênfase a ironia, o humor e a disposição de palpitar sobre temas contemporâneos e polêmicos, ainda vivíssimos, como feminismo, ecologia, racismo, críticas à modernidade, festas populares, o valor do trabalho, entre outros. Para essa compilação, escolhemos títulos para as crônicas e organizamos por assunto.
Esses dois livros se complementam e guardam um mundo maravilhoso que precisa ser conhecido. Talvez o texto do Azurenha não provoque o famoso amor à primeira vista, porque exige uma redução na velocidade da percepção do tempo, mas quando bate de verdade, estabelece uma conexão intensa com a leitora e com o leitor. São textos muito bonitos e um tanto misteriosos.
Luís Augusto Fischer – Entre a ideia de republicar o Azurenha e a realidade das edições, quais foram os obstáculos?
Alex de Cassio – Houve dois obstáculos principais nesse entremeio: grana e acesso aos acervos públicos.
Trabalhamos mais ou menos um ano e meio na reedição do Semanário, em paralelo a outros compromissos profissionais, sem perspectiva definida de como publicar, até sermos contemplados no edital da Sedac, com recursos da Lei Paulo Gustavo. Nossa editora não tem grande possibilidade de investimento, então nosso catálogo é formado por projetos assim, que envolvam parcerias e editais.
Esse recurso foi fundamental, porque permitiu, além da reedição inicialmente planejada, a produção de um documentário sobre a vida do Azurenha, a realização de eventos educativos, e a compilação de crônicas inéditas. Aí vem o outro obstáculo.
As coleções de periódicos antigos não estão disponíveis nas instituições. Não é um assunto que eu tenha conhecimento suficiente para arriscar um diagnóstico, mas a experiência foi complicada. No Correio do Povo, o acesso a edições anteriores ao ano de 1940 está interditado e no Museu de Comunicação a informação é de que não tem nada do período 1895 a 1909. Em certo momento, chegou a bater o desespero.
Mesmo durante a pesquisa biobibliográfica, boa parte das informações vieram do jornal A Federação, que está digitalizado integralmente na Hemeroteca da Biblioteca Nacional. E era do acervo da Fundação da Biblioteca Nacional, que tem uma coleção incompleta do Correio, que estava saindo a seleção de crônicas inéditas. Seria uma edição modesta, com 20 textos. Aí entram em cena duas pessoas muito generosas, o Alexandre Lazzari e a Maria Isabel Edom, que cederam material de seus acervos pessoais, provenientes de pesquisas acadêmicas sobre o Azurenha realizadas nos anos 1990. O Alexandre já tinha participado da reedição do Semanário e escrito um texto para outra publicação da editora, então foi meio natural pedir socorro ao acervo dele, que nos ajudou muito. A participação da Isabel tem um componente emocionante. Na ocasião em que tu me convidou para ler Paulino no Sarau Elétrico, ela assistiu, lá de Brasília, a transmissão pelo YouTube e ficou encantada com o projeto, nos escreveu dizendo que tinha guardado, desde 1997, uma grande quantidade de crônicas da época de seu doutorado: eram 569 páginas de Word, cobrindo os anos de 1899 a 1904.
Luís Augusto Fischer – Como tem sido a recepção dos dois livros dele? Já dá para perceber alguma modificação no panorama? Falta muito ainda para ele ganhar o lugar que merece?
Alex de Cassio – A reedição do Estricnina, organizada por ti em 1998, já havia reposicionado bastante o nome dele no circuito literário depois de décadas da obra fora de catálogo, porém, na vida cotidiana e no mundo do Google, Paulino Azurenha ainda era lembrado pelo nome da rua e da linha de ônibus em sua homenagem. Quando iniciamos o trabalho de reedição das crônicas, havia na internet algum comentário biográfico e um TCC da Brenda Vidal escrito na Fabico. Acho que a divulgação por conta dos lançamentos já causou certo efeito, sim. Há uma matéria na revista Parêntese, há outra que saiu no Jornal do Comércio, escrita pelo Rafael Glória, e o nome dele foi lembrado quando houve a polêmica da fala racista do presidente da Academia Rio-Grandense de Letras (Azurenha participou da fundação instituição e é patrono da cadeira 31). Além das pessoas mencionadas, o Azurenha foi abraçado pela Lilian Rocha e pelo Marcelo Martins Silva, que colocam seu nome na roda sempre que a oportunidade aparece.
Ao mesmo tempo, não acho que ele deva se consolidar como um fenômeno local. Recentemente, o mercado editorial brasileiro tem acolhido iniciativas interessantes que repensam a história do país, como o Dicionário literário afro-brasileiro (2007), do Nei Lopes, e a Enciclopédia negra (2021), organizada por Flávio dos Santos Gomes, Jaime Lauriano e Lilia Schwarcz, e o nome do Paulino ainda não entrou nesse radar. Tenho convicção de que ele precisa ser conhecido e reconhecido também na esfera nacional, ser lido, resenhado e discutido nos periódicos do centro do país. Até porque, como sabemos, isso acaba ecoando aqui também. A editora tem limitações de alcance e distribuição. Mas estamos trabalhando nesse sentido de divulgação, né, professor?
Quem sabe, em alguns anos, com mais pesquisa, ele ganhe uma biografia, inspire um filme, seja tema de mais trabalhos acadêmicos e a obra dele se torne leitura obrigatória.