De portas abertas à literatura latino-americana, a Feira do Livro de Porto Alegre de 2025 conta com a presença de David Hidalgo, jornalista e escritor peruano que lança A biblioteca fantasma neste ano. Às 20h, nesta sexta-feira (7/11), Hidalgo participa da primeira conversa sobre o novo livro, na Biblioteca Pública do Estado. No sábado, vai ao Clube do Comércio, às 14h, e realiza sessão de autógrafos na Praça da Alfândega, às 15h.
Conforme o autor, a obra é ao mesmo tempo um thriller e uma história de aventura, que investiga uma trama em uma das bibliotecas nacionais mais importantes do continente. Para Luís Augusto Fischer, editor da revista Parêntese, o trabalho contém um paralelo com ideia do escritor argentino Jorge Luis Borges, que afirmava ser possível falar de toda a história humana ao tocar em qualquer uma das pontas de um mistério. Leia abaixo a conversa entre Fischer e Hidalgo, mediada pelo tradutor Thomás Daniel Vieira.
Luís Augusto Fischer – Por que te ocorreu a ideia de escrever esse livro? Foi algo pessoal?
David Hidalgo – Sempre senti fascinação pelas histórias de mistério acerca dos livros ou das obras de arte que são grandes troféus do mundo antigo. Penso que o conhecimento da antiguidade alcançou cumes que só podemos compreender decifrando mensagens codificadas nessas peças. Um dos casos mais fascinantes talvez seja o do Palimpsesto de Arquimedes, um manuscrito medieval que continha uma transcrição em grego antigo de distintas obras do grande matemático grego. O texto original havia sido apagado em páginas que logo foram reescritas como um livro de preces da época bizantina. Quando o tomo foi analisado por uma equipe de cientistas, já no século XX, descobriu-se que continha fragmentos de várias obras de Arquimedes, incluindo a versão mais completa do Stomachion, um tratado matemático que oferecia uma sorte de quebra-cabeças de formas geométricas, considerado um antecedente das matemáticas combinatórias. Se não fosse por esse livro, e a história insólita de sua recuperação, essa informação teria se perdido.
Agora, meu livro é o resultado de uma casualidade. A casualidade foi que por volta de 2008, quando trabalhava como repórter, recebi de um informante anônimo a prova de que alguns tesouros bibliográficos da Biblioteca Nacional do Peru estavam à venda no mercado negro. Essa pessoa me entregou quatro livros antigos, que tinham sinais de terem sido alterados para ocultar os selos originais da Biblioteca Nacional. A edição mais antiga era de 1578, isto é, um livro publicado apenas 46 anos depois da conquista do Peru pelos espanhóis. Um desses tomos tinha uma etiqueta com o código de barras que lhe haviam colocado como parte de um recente processo de catalogação. Era uma amostra da impunidade do saque. Publiquei algumas reportagens a respeito, mas a cada passo eu ia me envolvendo com uma história fascinante de livros antigos e traficantes sem escrúpulos. Entre os livros e documentos perdidos havia teses manuscritas da antiga Universidade Nacional Mayor de San Marcos, tratados de cosmologia, sermonários barrocos, primeiras edições do cronista maior das Índias Antonio de León Pinelo, um mapa do século XVII do Estreito de Magalhães e um raro manuscrito religioso do início do século XVIII que mostrava o uso da língua nativa quíchua para a evangelização. Todas, peças únicas, consideradas tesouros do patrimônio cultural americano. Soube que isso deveria ser contado em um livro.
Luís Augusto Fischer – Teu livro compõe diversas dimensões narrativas — relatos diretos, referências eruditas, evocações do passado, interpretações pessoais, etc., em torno ao tema do roubo ou do desaparecimento de livros da Biblioteca Nacional do Peru, em uma narração com algo de um romance de suspense. Foi algo deliberado essa composição? Ou te ocorreu ao longo da escrita? Em outras palavras, como encontraste o tom narrativo?
David Hidalgo – O poeta latino Terentianus Maurus escreveu que os livros têm seu próprio destino. Caberia agregar que albergam seu próprio mistério. Por exemplo, um dos livros roubados na Biblioteca Nacional do Peru era um tratado de emblemas de 1711 sobre Santa Rosa de Lima, considerada a santa padroeira do Peru e da América. Era um livro fascinante que mostrava quarenta imagens simbólicas sobre a santa. Nos dias em que eu investigava os roubos, o governo nomeou como novo diretor da Biblioteca Nacional Ramón Mujica, um erudito reconhecido por ser um especialista em arte religiosa antiga e, em particular, como um dos principais estudiosos de Santa Rosa.
Um de seus livros mais famosos, Rosa Limensis, não só tomava o título desse tratado de emblemas do século XVIII: também mostrava que na época colonial se identificou a santa com a ave Fênix, para apresentá-la como um símbolo de renovação do Novo Mundo através da fé. Na gravura se vê uma ave sobre chamas de fogo e a seguinte inscrição: Occidit, et felix Surgit de Funere Phenix; / sed Rosa clara magis surgit ab igne Rogi (“Sucumbe a fênix e feliz ressurge da morte; mas Rosa ressurge mais clara do fogo do sepulcro”). Que relevância tinha esse dado? Pois o episódio mais grave na história da Biblioteca Nacional do Peru foi um devastador incêndio que a deixou em ruínas em 1943, após o qual se iniciou um processo de reconstrução que tomou como emblema a ave Fênix.
Então, eu tinha frente a mim um especialista em Santa Rosa, cujo emblema era a Fênix; uma instituição saqueada, cujo emblema histórico é a Fênix; e uma lista de livros roubados que incluíam o famoso tratado sobre Santa Rosa. Tudo encaixava. Eu olhava estes detalhes e dizia a mim mesmo: isto não é uma simples coincidência, aqui há um mistério por resolver. Com o tempo, vi que dentro da Biblioteca, que se pensa como uma instituição acadêmica, havia histórias secretas de intrigas e inclusive uma morte suspeita. Todos os elementos de um thriller. Não tive que pensar mais para encontrar o tom.
Luís Augusto Fischer – Quanto tempo te tomou o trabalho, desde as primeiras ideias até a edição em livro?
David Hidalgo – O livro é o resultado de dez anos de trabalho, desde que me deparei com a primeira história até sua publicação original em 2018. Isso implicou que me tomasse o trabalho de viajar a três países para seguir rastros dessa história. Visitei bibliotecas de monastérios, estações de polícia, arquivos históricos, casas de antiquários e colecionadores. Me meti a investigar uma sorte de cold case [casos arquivados] com muitos personagens.
Luís Augusto Fischer – Apesar de que não concluí a leitura, e portanto talvez teu livro me possa esclarecer, gostaria de saber que tal a pessoa de Ramón Mujica, o herói da trama toda? Ele esteve disponível para tua busca de informações?
David Hidalgo – Creio que a essência dos meus achados se deve à abertura que Mujica teve desde o início para esclarecer o tema dos roubos. Ele havia lido minhas reportagens e creio que o desaparecimento do tratado que havia servido para seu livro mais famoso, junto a outras evidências de roubos na Biblioteca, o indignaram com uma certeza que ele explicava como a determinação de uma cruzada da Idade Média. Desde o início estabelecemos um pacto de verdade, em que eu me propunha a investigar tudo que fosse possível e ele se comprometia a me facilitar o acesso à informação que fosse necessária com total transparência.
Mas, além disso, acontece que Mujica é um erudito em iconografia religiosa e história da arte vice-reinal. Seu traço mais notório é que ele explicava o fundo do que estava ocorrendo na Biblioteca em perspectiva apocalíptica: via sua cruzada contra os ladrões de livros antigos como uma luta contra as forças obscuras da corrupção, e explicava as tensões internas com a ideia de estar no ventre aberto da Besta. Quando discursava a seu pessoal de confiança, lhes dizia que deviam sentir “ira santa” para combater os corruptos. E muitas de suas referências eram a ideias ou autores medievais que falavam da sociedade como um corpo político, um corpo submetido a tormentos pelos pecados públicos. Era como estar vendo um personagem de um romance de mistério, mas à frente de uma cruzada real.
Um dia, quando a campanha contra os ladrões de livros estava mais forte do que nunca, fomos à biblioteca de um convento para identificar alguns dos livros valiosos que a Biblioteca Nacional ia apresentar em uma exposição muito importante. Mal entramos, Mujica fixou-se em um livro coral, um exemplar do tamanho de uma mesa que tem partituras de música sacra. A primeira coisa que chamou a atenção foi uma página que continha uma grande letra capitular decorada com uma rosa rodeada de filamentos de ouro. A letra dava início a esta frase: Dixit Dominus Domino meo: Sede a dextris meis, donec ponam inimicos tuos scabellum pedum tuorum. Era um versículo do evangelho de São Mateus que diz: “Disse O Senhor a meu senhor: Senta-te à minha direita enquanto ponho teus inimigos a teus pés”. Em outra das páginas aparecia o nome Franciscus, que Mujica assinalou como o primeiro santo estigmatizado da Cristandade. Nesses mesmos dias, o então papa Francisco havia falado da corrupção como um mal maior que o pecado. Eram simples coincidências? Não sei, mas a mim, como narrador, soavam a mensagens que nos chegavam para entender a dimensão do que estava acontecendo. Creio que estes e muitos outros fatores que conto no livro explicam por que é uma história extraordinária, muito além da minha capacidade de contá-la.
Luís Augusto Fischer – Teu livro é uma clara prova de que, como gostava de pensar Jorge Luis Borges, ao tocar em qualquer das pontas de um mistério, se acaba por movimentar toda a história humana. Com o desaparecimento de livros da Biblioteca do Peru se está imediatamente em contato com a história de toda a conquista europeia na América, do papel da Igreja Católica, da exploração dos povos originários. A ti parecia óbvio que fosse assim, desde sempre? Ou a busca de informação te revelou que esse era o tamanho do problema?
David Hidalgo – Já que mencionas, precisamente no imaginário borgiano se fala do Paraíso como uma forma de biblioteca. E eu digo no livro que, no Peru, uma biblioteca como esta pode ser uma manifestação do inferno. Essa chave de uma luta atávica entre o bem e o mal em pleno século XXI me deu a chave para entender e enlaçar muitos temas e personagens. Por exemplo, muitos dos livros roubados são biografias de santos ou textos religiosos que serviram para evangelizar na fé cristã os povos originários, mas também havia tratados jurídicos ou livros científicos de autores que no período da colônia tentavam compreender o Novo Mundo.
Esses livros permitem rastrear a evolução das ideias em distintos campos, por isso digo em um momento que são artefatos que nos permitem viajar no tempo. Como dizia Carl Sagan, um livro te permite escutar uma voz que vem do passado, de alguém que provavelmente morreu vários séculos antes, mas segue vivo de alguma maneira. Ao lê-los, se pode entender os debates jurídicos e teológicos da época sobre os direitos dos povos conquistados na América, mas também a fascinação com uma realidade que aos olhos dos europeus devia ser como tentar descrever outro planeta. Proteger esse legado é de máxima prioridade para qualquer país.
Por desgraça, o tráfico de patrimônio cultural é um flagelo muito difícil de combater. A história que conto é a de uma cruzada muito luminosa em achados, mas que estava condenada ao fracasso. É o mesmo que ocorreu com tantos casos da história recente em que a corrupção termina por ficar impune. Tendemos a pensar que o passado é um mundo desconectado da nossa realidade, mas estamos equivocados. Através deste episódio, entendemos os mecanismos da corrupção, mas também os matizes e labirintos do mal.
Luís Augusto Fischer – E uma pergunta fora do tema do teu livro: Como espera a reação de leitores brasileiros, em geral pouco conectados com seu pertencimento à América Latina?
David Hidalgo – Creio que este livro traz uma história universal, que é a velha batalha entre o bem e o mal refletida na cruzada de um erudito contra os ladrões de livros antigos. É uma trama de mistério ocorrida nos ambientes silenciosos de uma das bibliotecas nacionais mais importantes do continente. É quase um thriller, mas também uma história de aventura; é um ensaio sobre a paixão dos livros como máquinas do tempo e de conhecimento, mas ao mesmo tempo um caso de corrupção na instituição mais insuspeitada. Creio que os leitores contemporâneos têm numerosos referentes para decodificar e entender uma história como esta, desde Harry Potter até o Código Da Vinci. Gosto da ideia de que consegui transmitir essa angústia ante as faces da corrupção, mas também o amor pelos livros, a fascinação por artefatos do passado que devemos cuidar para proteger o futuro.
Luís Augusto Fischer – Outra mais, por curiosidade: Conheces a Biblioteca Nacional do Brasil? (E a história tremenda da proibição total da imprensa ao longo de todo o período colonial brasileiro, a qual marca uma profunda diferença do Brasil em respeito à história da América hispânica e do Peru em particular?)
David Hidalgo – Me surpreendi ao saber que no Brasil a imprensa esteve proibida até o século XIX. O Peru teve a primeira imprensa da América do Sul, em 1584. É uma diferença de uns duzentos anos. Creio que cada país tem em seus livros o registro mais fiel de sua história, um mapa da evolução das ideias que deram forma às sociedades contemporâneas. De que maneira a história da imprensa e das bibliotecas nos mostra como país é uma tarefa permanente. E são esses títulos históricos os pilares sobre os quais se constroem os grandes relatos nacionais.
No Peru, por exemplo, a Biblioteca Nacional se criou com base na biblioteca confiscada dos jesuítas após sua expulsão dos territórios espanhóis no século XVIII, mas também com os livros doados para fundá-la pelo general José de San Martín, libertador do Peru. Atribui-se a ele a ideia de que a biblioteca serviria para consolidar com as ideias a liberdade ganha com as armas. A história oficial reconhece que San Martín entregou entre seiscentos e setecentos livros. Por distintas razões da acidentada história da Biblioteca, na atualidade só se conservam pouco mais de setenta. Pode haver metáfora mais direta de um país saqueado ao longo de sua história? Não o creio. E minha investigação para este livro me convence desta ideia. Espero conhecer mais da história do Brasil a partir da história de seus livros.