Nesta quinta-feira, 6 de novembro, parte da programação da 71º Feira do Livro de Porto Alegre envolve um bate-papo com os vencedores do Prêmio Sesc de Literatura 2024, dentre eles a jornalista Patrícia Souza de Lima, premiada pelo conto A glória dos corpos menores. Além do percurso pela ficção, Lima lançou em 2025 a obra Os Limas pelo mundo, em que relata viagens com seu pai após um difícil período enfrentado pela família. Confira abaixo a conversa entre a escritora e o editor da revista Parêntese, Luís Augusto Fischer, material que integra uma série de diálogos entre autores e autoras presentes na edição deste ano da Feira do Livro. A Matinal vai publicar os conteúdos ao longo do evento, até 16 de novembro. Leia aqui todas as entrevistas, e acompanhe as demais atividades da Feira.
Luís Augusto Fischer – Teu livro é realmente singular entre os livros singulares, né? Relatos de viagem de filha e pai, filhas e pai, e a mãe durante certo tempo. Conta como nasceu Os Limas pelo mundo, por favor.
Patrícia Lima – Comecei a pensar em escrever esse livro quando minha mãe morreu, no final de 2022, depois de um longo período de convivência com o Alzheimer e, desde 2020, com as terríveis sequelas da covid. Como família, estávamos preparados para a partida dela, acho que a gente até desejava um descanso, pra ela e pra nós. Mas a chegada da morte, na prática, é meio imprevisível, e ficamos todos entristecidos, cabisbaixos. Sempre digo que a morte dela não foi uma tragédia, pelo contrário, mas ainda assim não deixa de ser um evento sombrio, triste. E sempre que nos reuníamos em família, dávamos boas risadas com as histórias das minhas viagens com o pai. Os perrengues, as tiradas engraçadas, os sufocos, tudo isso virava gargalhada, nos sacando um pouco daquele estado introspectivo tão peculiar às fases iniciais do luto. Aos poucos fui amadurecendo a ideia de transformar algumas dessas histórias em um livrinho despretensioso, com crônicas curtas, que fizesse as pessoas rirem, numa dessas até encorajasse alguém a viajar.
Minha família sempre viajou bastante. Éramos gente simples, classe média trabalhadora, o pai era comerciário, atuava em farmácia. A mãe começou a vida como empregada doméstica, aos 11 anos. Chegou a morar em Porto Alegre com uma família de diplomatas logo que completou 20 anos. Ao voltar para Rio Grande, nossa cidade natal, foi trabalhar em fábricas, comércios, chegou a ser bancária no Unibanco graças à sua inteligência e sua perspicácia com números. Quando se preparava para engravidar da minha irmã, decidiu parar de trabalhar para cuidar das duas filhas – eu a mais velha.
Os comerciários e suas famílias tinham muitas facilidades para viajar com o Sesc – conto isso no livro. Foi nas excursões subsidiadas pelo Sesc que a gente percorreu os roteiros tradicionais da Serra Gaúcha, Torres, até em Santa Catarina a gente andou. O busão saía de Rio Grande lá pelas 22h, 23h de sexta. Salgadinho e refri rolando, conversa, criança chorando. Antes de chegar em Porto Alegre já tava todo mundo dormindo. Amanhecíamos em Gramado, Canela, Farroupilha, Veranópolis. Domingo de noitezinha lá vinha o busão de volta pro sul do Estado.
Como sempre moramos em Rio Grande, era mais fácil chegar ao Uruguai do que a Porto Alegre. Isso fez com que o país hermano fosse um destino frequente nos invernos. Percorríamos as praias desertas e nos hospedávamos nos hotéis bacanas, todos vazios. Em certo ponto, eu já na faculdade, a minha irmã no (antigo) segundo grau, pai e mãe descobriram a CVC e foram para Porto Seguro. Depois, encararam uma viagem de carro com uns amigos para Buenos Aires.
O sonho do pai sempre foi conhecer Portugal e a Europa. Mas isso era inatingível nos anos 1980 e 1990. Anos 2000 avançando, passagens barateando, pacotes de viagem pipocando, o impossível ia se tornando só uma questão de tempo. Mas aí a mãe começou a apresentar os primeiros sintomas do Mal de Alzheimer. O diagnóstico definitivo veio em 2009, depois de um périplo de anos por neurologistas. Em 2012, em uma conversa com o pai depois de um dia difícil de manejo com a mãe, propus de viajarmos, nós dois, pra Portugal – pra levantar o astral. E assim começamos a fazer essas viagens juntos.
Luís Augusto Fischer – Como foi o processo de produção do livro? Tu pegaste depoimentos do teu velho? Vocês retomaram documentos antigos, fotos, etc.? Conta algum bastidor desse caminho.
Patrícia Lima – No verão de 2023, eu lia um livro da Martha Medeiros, com relatos de viagem. Tem uma trip que ela faz para o Japão com uma das filhas, dois meses depois daquele tsunami que arrasou a usina nuclear de Fukushima. Pensei, bah, eu e o pai temos pelo menos uma história assim, chegamos a Barcelona uma semana depois de um atentado terrorista. Uma noite estávamos jantando na nossa casa, na Praia do Cassino, e soltei a ideia. "Pai, vamos escrever um livro com nossas histórias de viagem?" Ele topou, um pouco pelo vinho que já tinha tomado, outro pouco talvez por achar que eu estivesse brincando. Mas aí a ideia ficou martelando na minha cabeça e eu fiquei com vontade de escrever.
Comecei escrevendo uma crônica e outra, nos intervalos do trabalho. Sou jornalista há muitos anos, escrevo rápido e sem muita firula, é isso que a gente aprende com a experiência de vida nas redações. Mas essas crônicas eram diferentes. Sou leitora de crônicas, mas não tenho o hábito de escrevê-las. Nunca fui cronista, sou repórter. E escrever relatos pessoais me deixava desconfortável. Tenho traquejo pra contar histórias dos outros, não minhas. Mas a coisa foi indo. Remexi em fotos, revisitei uns recibos que o pai quis guardar depois da primeira viagem a Portugal, conversei muito com ele, pra lembrar de episódios. Quando vi, já tinha uns 10 textos. Mostrei pro pai e perguntei a sério se ele queria escrever. Combinamos então de ele me dar depoimentos e eu editar. Assim nasceu o texto de apresentação do livro, em que ele conta como começamos a viajar. Estávamos eu e ele na minha casa em Porto Alegre e eu tinha feito um bacalhau no forno. Depois de jantar e tomar umas taças de vinho, peguei o computador e pedi que me contasse desde o começo aquela história de sonhar conhecer Portugal. Já os pitacos que ele dá depois das crônicas, em textinhos pequenos, fui pegando aos poucos. Alguns ao vivo, outros por telefone. Tentei preservar ao máximo o estilo dele, que ama contar histórias e é leitor de grandes escritores como Simões Lopes Neto, Eça de Queirós, Aparício Silva Rillo.
A ideia era sempre ter eu e ele nas histórias, afinal, o livro é sobre as viagens de pai e filha. Mas lá pelo meio tem mais gente viajando junto, mais gente da família. Em uma das histórias tem até a mãe, na última viagem que fizemos com ela. Não tem nenhum lugar exótico no roteiro, como nos livros da Martha, que é viajante (e escritora, claro) muito mais tarimbada do que eu. O que tem é coisa que acontece em viagem normalmente, deslumbramentos, trapalhadas, descobertas.
Luís Augusto Fischer – E agora, depois de o livro andar pelo mundo, qual a sensação, tua e do teu pai e da família em geral?
Patrícia Lima – Quando o livro chega nas pessoas e elas leem, a resposta é sempre carinhosa. Muita gente ri dos nossos sufocos, que era o objetivo inicial. Mas também tem gente que se emociona, talvez por remexer nas suas próprias lembranças, de viagens com a sua família, da companhia de seus pais e irmãos. Memórias de família são sempre sensíveis, não precisa nem envolver viagem. Acho que o tempo que a gente passa com os pais ou com figuras familiares com quem temos ligações de afeto é sempre precioso. Como foi nosso tempo com a mãe e como tem sido o tempo que passamos juntos, eu, o pai, minha irmã, meu marido, relembrando nossos afetos e rindo dessas pequenas aventuras que fazemos.
Dia desses o Olavo, meu sobrinho de seis anos, contou na escola que o vô escreveu um livro. Vai ser tri se a gente deixar pra ele o interesse pelas histórias da família. No futuro ele vai ler um pouco sobre a Vó Carmen, que ele mal conheceu, mas de quem herdou traços físicos e o cacoete de morder a língua enquanto executa qualquer tarefa. Assim a gente vai aproximando o guri dos livros e da leitura de um jeito mais natural, o que me recompensa bastante.