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Zahỳ Tentehar: “Nós nascemos como corpos teatrais”

Zahỳ Tentehar: “Nós nascemos como corpos teatrais”
Foto: Jéssica Lima

A mame’u tar amó ma’e pè mè…”, diz Zahỳ Tentehar nos primeiros instantes do monólogo Azira’i – Um Musical de Memórias. A fala em idioma originário é uma de tantas que a atriz concilia com o português ao longo do espetáculo, que lhe rendeu o Prêmio Shell de Teatro (2024), na categoria Melhor Atriz, e integrou a programação da Mostra Internacional de Arte Contemporânea (MIAC) no último fim de semana.

As falas em ze’eng eté, língua do tronco tupi-guarani, não são traduzidas durante a peça, exigindo que o público lide com o estranhamento de escutar um idioma desconhecido. “O ze’eng eté surge como provocação para que as pessoas possam sentir, ouvir e pronunciar uma língua originária. Temos mais de 270 línguas faladas no nosso país, e a que a gente fala, o português, é uma língua alienígena”, conta Zahỳ em entrevista à Matinal.

“Tem momentos em que faço questão de que não se traduza. Sou filha de dois pais que ficaram cegos e mãe de uma criança autista não verbal. Isso me faz querer que o espetáculo não seja só visto e explicado, mas que as pessoas possam ter a experiência de um ritual”, completa a artista, que após a última sessão de Azira’i em Porto Alegre, no domingo (12/10), foi homenageada pela Fundação Theatro São Pedro.

Reprodução: Instagram

O ritual da atriz em Azira’i – nome indigenizado de Alzira, sua mãe – nasceu do interesse em explorar sua própria história. Caçula de seus 32 irmãos, Zahỳ nasceu em 1989, na Aldeia Colônia, no território indígena Cana Brava, no Maranhão. Passou parte da infância e a adolescência em Barra do Corda (MA) até se mudar para o Rio de Janeiro, aos 19 anos, indo morar na Aldeia Maracanã, – retomada indígena que ocupa o antigo prédio do Museu do Índio

A artista migrou para a capital fluminense de ônibus, com o pouco dinheiro que tinha, outros 50 reais emprestados pelo pai e um frango com farofa para alimentá-la durante a viagem de quatro dias. A ideia surgiu após trocas de mensagens no Orkut com moradores da Aldeia Maracanã. Já no Rio, em meio à militância pela causa indígena, Zahỳ gravou um vídeo em ze’eng eté defendendo a retomada. A mensagem viralizou e chegou à produção de elenco da série Dois Irmãos (2017), da Globo, que convidou a atriz para um teste.

Zahỳ foi selecionada pela emissora para interpretar a personagem Domingas, dando início a uma carreira como atriz, performer e cantora que inclui a ópera O Guarani (2023) – em adaptação concebida por Ailton Krenak –, a série Cidade Invisível (2023, Netflix), obras de videoarte, uma participação como cantora em Vão (2022), álbum de José Miguel Wisnik, e peças como Macunaíma – Uma Rapsódia Musical (2019) e Azira’i (2024), que tornou Zahỳ a primeira indígena vencedora do Prêmio Shell na categoria de Melhor Atriz.

Foto: Jéssica Lima

“Há muitos artistas indígenas talentosos sem espaço para desenvolver suas habilidades. Entendo que esse prêmio vai ajudar a ter um olhar para outros indígenas e para que eles próprios se percebam nesse lugar e queiram ser os próximos a receber prêmios”, diz Zahỳ – que significa “lua”, em ze’eng eté.

“Todos nós nascemos como corpos teatrais. Encenamos desde pequenos, quando brincamos e criamos personagens. Isso é teatro. Cada vez mais, na cidade, estamos perdendo a capacidade de teatralizar com naturalidade. Mas a verdade é que somos teatrais desde criança”, completa a multiartista autodidata.

Ao longo dos ensaios com os diretores Duda Rios e Denise Stutz para a montagem de Azira’i, os vínculos de Zahỳ com sua mãe ganharam evidência. “Todo mundo tem uma relação intensa com a sua mãe, até aqueles que não têm uma relação, desde um lugar bonito até os mais sombrios”, afirma a atriz, que aborda esses extremos no espetáculo – da admiração pelo canto e poder de cura de Alzira à dor das agressões que Zahỳ sofria quando a mãe passava por perturbações.

“Diz o dicionário: perturbação é o ato ou efeito de perturbar. Uma desordem, uma confusão, um estado de agitação ou alteração psicológica”, reflete a atriz em um post nas redes sociais. “Herança de quem invadiu, colonizou e chamou isso de ordem. Uma perturbação que não nos pertence, mas que ainda assim moldou o que somos”, conclui o texto.

Foto: Leo Aversa

Na conversa com a reportagem sobre as questões de saúde mental presentes em Azira’i, a artista ressalta a história de vida de sua mãe, falecida em 2021 após uma infecção generalizada. “Uma mulher que era pajé suprema na sua aldeia, muito respeitada e dotada de conhecimento, de repente vai para a cidade, não fala a língua daquele povo e se torna uma pessoa marginalizada, que sobrevive de restos de comida. Esse tipo de violência fica marcada e vem se perpetuando até os dias atuais.”

Zahỳ destaca o elevado e crescente número de suicídios entre os povos originários – uma proporção 2,7 vezes maior do que na população em geral. “Isso diz muito sobre o processo de aculturamento dos povos indígenas.” Ao abordar um sofrimento psíquico ao mesmo tempo individual, familiar e coletivo, Zahỳ coloca em cena, de forma singular, a violência sofrida pelos povos originários ao longo de séculos de colonização e processos “civilizatórios” – termo que a artista questiona na obra Karaiw a’e wà, Os Civilizados (2022), exibida na última terça-feira (14/10), em sessão comentada promovida pelo MIAC no Instituto Ling.

“Dificilmente não choro no espetáculo”, revela Zahỳ, que busca promover um processo de cura em Azira’i, abordando dores ancestrais com ternura, humor, música, dança e sua notável habilidade para contar histórias – registradas no livro Azira’i – Um Musical de Memórias (Cobogó), com apresentação de Krenak.

Foto: Leo Aversa

Entre as próximas narrativas de Zahỳ, destaque para o longa Miranha, dirigido por ela e Luiz Bolognesi, em fase de montagem, que teve uma versão curta-metragem lançada em setembro no Festival do Rio. O projeto aborda o rapto da jovem indígena Miranha pelos naturalistas alemães Johann Baptist von Spix e Carl Friedrich Philipp von Martius durante uma expedição pelo Brasil no século 19.

Zahỳ também codirige, ao lado de Felipe M. Bragança, o longa Makunaima XXI, inspirado no clássico de Mário de Andrade, que está sendo gravado na Terra Indígena Raposa Serra do Sol (Roraima) e nas cidades de Brasília, Manaus e Rio de Janeiro.

Como atriz, Zahỳ gravou recentemente Nova Éden, com direção de Aly Muritiba, previsto para 2026, e integrará o elenco do longa, ainda sem data de lançamento, sobre a vida do seringueiro e ativista Chico Mendes (1944–1988), produção idealizada pelos atores Bruno Gagliasso e Jorge Paz, com direção de Sérgio Machado e Sérgio de Carvalho.

Ricardo Romanoff

Repórter e editor de Cultura na Matinal. Também é tradutor, com foco em artes e meio ambiente, além de trompetista de fanfarra nas horas vagas. Contato: ricardo@matinal.org

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