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Cadáveres sem nome

Peça de teatro interpela europeus sobre refugiados mortos

Cadáveres sem nome
Racismo e xenofobia preocupam estrangeiros na França/Foto de Juremir Machado da Silva

Mais do que tudo a Europa teme a invasão dos “novos bárbaros”, os migrantes vindos da África em busca de refúgio e de nova vida. A peça Necrópole: cidade dos mortos, que fomos ver no Teatro de la Vignette, da Universidade Paul Valéry, em Montpellier, na França, a convite de nosso amigo Vincenzo Susca, é uma forte e eficaz provocação ao desinteresse dos europeus pelos que morrem tentando entrar no continente europeus, chegando, como diz o texto, em “estado de cadáver”, recebendo muitas vezes uma sepultura anônima em algum lugar.

O texto assenta-se sobre uma tese de Walter Benjamin: não há civilização sem crime. A concepção e a direção são de Arkadi Zaides. Fiquei imaginando o sucesso que essa peça faria em Porto Alegre pela sua força de interpelação. No começo, o espectador é convidado a ver num telão o cursor vagando entre diversas marcações, no território europeu, de sepulturas pobres, com uma vaga indicação de quem está enterrado, ou covas sem nome onde jazem os que morreram anônimos. É gente que se matou, que se afogou, que foi morta pela polícia, que sonhava com uma vida melhor e encontrou o pior num barco precário, na dobra da esquina, escondendo-se dos fiscais de imigração, fugindo.

A peça exige que todos os corpos sejam submetidos aos procedimentos médico-legais de praxe e que se busque identificá-los.

Na segunda parte da obra, um carrinho com restos mortais é trazido para o palco e legistas tentam remontar um corpo a parte de suas partes. O material é de silicone. O realismo é assustador.

Uma voz sem rosto provoca sem piedade: “Para obter o direito de viver na Necrópole é preciso morrer tentando entrar nela. A cidadania é concedida a título póstumo a cadáveres despedaçados e em decomposição”. O público tentar olhar o vazio. Tudo está preenchido.

O autor e diretor nasceu na Bielorrússia e atua como bailarino, coreógrafo e artista visual. A sua obra nem cogita da existência de um espectador distanciado. Ao final, questiona: aplaudir ou não?

Impossível não sair da sala remexido, angustiado, interpelado. Mesmo a alegria da noite do centro histórico de Montpellier numa sexta-feira, com milhares de jovens se divertindo, baixa a tensão.

Uma pergunta circula: até quando? As imagens das câmeras vagando por cemitérios, verdadeiras cidades de grandes túmulos, até se focar num cantinho de solo perdido, fica na mente por um bom tempo.

O que justifica deixar centenas no morrer no mar em barcos de fortuna sem abrir as portas dos portos para oferecer-lhe uma saída?

Europa que saqueou, pilhou, escravizou, matou e colonizou tapa os olhos e os ouvidos a esses seres com ou sem nome que lhe pedem socorro. Se milhares entram, não são poucos os recusados que perecem na travessia. A peça fala em 66 mil em alguns anos. Até quando mesmo?

A arte existe para interpelar, provocar, sacudir o marasmo, arrancar da zona de conforto, dar bofetadas na percepção alienada.

Na manhã seguinte a sensação pode ser a de uma enorme ressacada sem ter bebido uma só gota dos maravilhosos vinhos franceses.

     

     

Juremir Machado da Silva

Juremir Machado da Silva

Jornalista, escritor e professor de Comunicação Social na PUCRS, publica semanalmente a Newsletter do Juremir, exclusiva para assinantes dos planos Completo e Comunidade. Contato: juremir@matinal.org

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