Quem nunca fez ou respondeu a essa pergunta? Pergunta que, se fosse levada a sério, seria complexa demais, tão difícil de responder quanto uma quem tu és? Felizmente, a resposta comumente dada é de uma simplicidade que me encanta: eu sou de..., e normalmente vem o nome de uma cidade. Sinto uma indisfarçável alegria em saber que ainda damos como resposta um vínculo com uma porção de terra, um lugar específico desse planeta que tem significado, nome e é especial para o questionado.
Nasci em..., me criei em..., mas hoje sou totalmente... é uma sequência comum de se ouvir logo depois do lugar de nascimento. A cidade, se vê, marca profundamente nossas vidas, invade nossa subjetividade. É palco do dia a dia, sonho de noite em noite.
Se isso alegra alguém como eu, que ama as cidades, por outro lado traz a angústia de ver como estão sendo tratadas, do risco do seu desaparecimento. Afinal, se tudo à nossa volta está se desmaterializando, indo para as nuvens, por que as cidades não iriam?
Na verdade, acho que já foram. Cidade atualmente é mais um conceito abstrato do que uma materialidade propriamente dita. Ela mais nos habita do que nós a habitamos, por mais que possa parecer estranho. Ela começou a deixar de existir quando o rural e o urbano passaram a oferecer os mesmos modos de vida em termos de recursos e confortos materiais. Eram dois mundos, até o linguajar era diferente. Sabia-se quando terminava um e começava o outro. Hoje, esses limites não passam de um registro político que não bate com o mapa mental que fazemos deles. A cidade invadiu o campo? Não, ela se expandiu de forma fragmentada por um território sem limites, amorfo. Não carregou a densidade que a caracteriza, pelo contrário, se espraiou, se pulverizou estrada afora.
Ao mesmo tempo, a cidade histórica, principalmente na América (as três), iniciou um processo de periferização de si mesma. Transformamos as antigas ruas em vias de alto tráfego como se fossem estradas. Já não se vê calçadas em muitas ruas de Porto Alegre. O que se vê são acostamentos onde param ou estacionam automóveis. Aqui, se vai à farmácia como se fosse a um posto de combustível.
O que vai acontecer, então, com essa cidade que guardamos dentro de nós? Esses traços de memória atávica vão desaparecer também? Vai chegar o dia que ninguém nos perguntará de onde tu és? Tudo indica que sim. O território tratado como mercadoria, como chão de fábrica para reprodução do capital é todo igual em todo o planeta, padronizado como as filiais de uma multinacional de café, roupas ou comida. Que diferença vai fazer ter nascido aqui ou ali em um território sem fim ou começo, sempre igual? O que ele poderá trazer para a formação do nosso mundo interno?
Para não terminar minha primeira coluna de forma tão desanimadora em relação ao futuro, gostaria de dizer que há caminhos alternativos. São difíceis de realizar na atual conjuntura mundial dominada por meia dúzia de empresas que nos oferecem as nuvens como paraíso, mas possíveis se a consciência de defender a terra, em seu sentido físico e psíquico, se alastrar, se tornar hegemônica. Eu sei, vão dizer, mais um utópico a gastar letras! Aceito, não tenho nada contra utopias, antes pelo contrário. Não vou desistir, vou insistir, vou atrás do meu oxigênio matinal.
Quinzenalmente, vou argumentar, nesse espaço, que a cidade — a que carregamos dentro de nós — só vai sobreviver se for planejada e administrada pelo viés cultural e social. Vou defender a preservação e criação do espaço público como referência simbólica. Lutar pela eliminação de preconceitos e ilhas de discriminação que transformaram Porto Alegre num arquipélago de apartados, de ricos contra pobres entre tantos outros preconceitos. Vou cobrar para que cada lugar, novo ou antigo, seja único, para guardar ou revelar afetos. Vou falar de arquitetura, essa arte que individualiza o espaço e registra memórias que não são materiais, apesar da sua materialidade. Arte que guarda histórias de vidas. É sobre elas que os governantes deveriam estar atentos quando planejam, por obrigação de ofício, a necessária transformação da cidade. Vamos desassossegá-los. Conto com vocês!