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Malês, os rebelados de janeiro de 1835

Malês, os rebelados de janeiro de 1835
Reprodução

Ainda está em exibição nos cinemas um grande filme brasileiro: Malês, dirigido por Antônio Pitanga, com roteiro de Manuela Dias, a autora do remake da novela global Vale Tudo. Janeiro de 1835, Bahia, escravizados muçulmanos revoltam-se contra a violência do sistema que os oprime, impedindo-os até mesmo de ter uma “casa de rezas”, uma mesquita. Organizados em cooperativa para levantar fundos destinado a alforriar companheiros, sabendo ler e escrever em árabe, alguns até em português, eles querem ser livres e encontram forças na fé em Alá.

O filme traça o itinerário da violência e da revolta crescentes, dos estupros assistidos por uma proprietária de escravos (interpretada por Patrícia Pillar) aos castigos em chicotadas devastadoras. A trama gira em torno de Pacífico Licutan, escravizado de 75 anos de idade, considerado um mestre pelos seus, que o dono não aceita vender e que acaba preso para ser vendido em leilão como forma de abater as dívidas do amo. A história da escravidão no Brasil é descrita com sangue.

A revolta dos malês foi uma das mais importantes do século XIX brasileiro. Meu amigo historiador Décio Freitas foi um dos seus estudiosos. Ele gostava de contar que chegou a ser convidado por Muamar Kadafi para ir a Líbia falar do seu livro sobre o assunto. Para ele, sempre com uma tese para as despesas de conversação, a rebelião dos malês havia despertado os escravistas para o perigo de ter cativos ilustrados. A repressão ao movimento, depois de uma traição das mais banais possíveis, a da mulher que quer proteger o marido, estipulou penas de até mil chibatadas, o máximo permitido, condenações à morte (quatro de 16 foram executados) e deportações para a África.

Não dou spoiler, comento o que está em livros de história. O filme de Pitanga merece mais atenção da mídia e do público. Eis uma obra para ser destacada num Oscar. Ele trata do mais longo regime ditatorial brasileiro, a escravidão. Mais de trezentos anos de infâmia, horror, sequestro de pessoas e cativeiro. Na noite de eclosão da revolta dos malês, rebelados gritavam, “hoje é noite de matar branco”. Um passado e um presente de humilhações exigiram reparação.

O filme está redondo, com ótimas interpretações, especialmente as de Camila Pitanga, Wilson Rabelo, Edvana Carvalho e Antônio Pitanga. Não é fácil ver uma história desse tipo sem se remexer bastante na cadeira. A indignação sobe pela garganta. Algumas pessoas murmuram ou soltam interjeições e exclamações incontidas. A revolta dos malês mostra também que os escravizados buscaram, como puderam, a liberdade. As forças eram obviamente muito desiguais. A repressão tinha por objetivo dissuadir novas tentativas pelo medo. Por essa razão, buscava ser exemplar em crueldade exibida em locais públicos.

Malê queria dizer muçulmano numa derivação da palavra ioruba imàle. Os rebelados eram principalmente nagôs e hauçás. Encarnaram um dos momentos mais dolorosos e dignos da história brasileira. Heroicos.


As opiniões emitidas por colunistas não expressam necessariamente a posição editorial da Matinal.

Juremir Machado da Silva

Juremir Machado da Silva

Jornalista, escritor e professor de Comunicação Social na PUCRS, publica semanalmente a Newsletter do Juremir, exclusiva para assinantes dos planos Completo e Comunidade. Contato: juremir@matinal.org

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