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Google e o jornal invisível

Google e o jornal invisível
Fonte: Pixabay

Setembro de 2025 será lembrado como o mês em que o Google criou o primeiro jornal invisível no Brasil. Quem usou o Modo IA (print abaixo) do buscador mais acessado do mundo conseguiu acompanhar, sem muito prejuízo, o desenrolar do julgamento que condenou Bolsonaro por tentativa de golpe. Não foi preciso escolher, no cardápio de links que a versão tradicional de busca oferece, qual site de notícias parecia mais completo, atualizado ou analítico. Em vez de uma lista de matérias, a nova funcionalidade passou a entregar uma resposta de texto corrido, como qualquer ferramenta de IA generativa de prateleira. Foi, mutatis mutandis, a primeira grande cobertura generativa do Brasil.

O Modo IA já estava disponível em outros países desde junho e, no Brasil, começou a ser liberado gradualmente neste mês – bem na semana do julgamento. Nos assuntos genéricos e burocráticos (calendário de vacinação, letra de música ou bula de remédio, por exemplo), ele parece uma mão na roda. Ninguém precisa mais esbarrar no carnaval de anúncios nem procurar a informação no meio de um texto arquitetado para reter o leitor.

Mas quando a pergunta envolve uma notícia, a coisa muda de figura. A resposta consegue condensar as seis perguntas que um texto jornalístico costuma entregar no primeiro parágrafo – o quê, quem, como, quando, onde e por quê. Faz isso já com contexto e depoimentos, na mesma página em que se faz a busca. A plataforma varre os sites mais relevantes (pelos critérios do Google) e usa sua IA generativa (Gemini) para despejar, em segundos, uma matéria sintetizada. A máquina ficou com a curadoria, a edição e a redação. As fontes foram escanteadas, e não fica claro de qual site vieram as informações. A infraestrutura do jornalismo ficou opaca. O jornal ficou invisível.

O caso da cobertura do julgamento foi emblemático. Graças à velocidade de indexação da ferramenta – que acelera quando há mais textos e buscas sobre um tema –, em menos de uma hora depois de os jornais publicarem uma atualização, o Google já entregava informação consistente. À medida que o tempo passava e novos conteúdos eram incorporados, as respostas melhoravam. Uma semana depois, já trazia uma análise detalhada do voto do ministro Luis Fux, o único contrário dentre os magistrados.

Talvez essa função não pareça nova para você que via aquela caixinha tímida com respostas rápidas, chamada Visão geral criada por IA. Ela segue lá nas buscas gerais, mas restrita a perguntas tipo “como funciona o STF” ou “quanto tempo dura uma sessão do supremo”. Quando se trata de um acontecimento jornalístico, ela não aparece. Nesses casos, o Google ainda traz para o leitor uma grade de notícias, com títulos e marcas reconhecíveis. 

No Modo IA, essa última barreira se rompe. O factual também é engolido, a pluralidade de links é varrida pro canto, e no lugar surge uma matéria sem rosto, exigindo a boa vontade do leitor para descobrir de onde o conteúdo veio. O jornal está lá, mas já não se vê direito.

É difícil medir o impacto dessa mudança, mas é certo que não vai ser apenas aquele tipo de atualização que obriga os jornais a jogar o jogo das big techs. É um terremoto silencioso que abala duas camadas vitais do jornalismo. A primeira é a da audiência: onde a funcionalidade já está ativa, os sites de notícias viram os acessos despencarem. A segunda é a da materialidade: o jornal concentrava, sozinho e ao longo de 400 anos, a produção (as redações), o empacotamento (o papel) e a distribuição (os jornaleiros) da notícia. Aos poucos, a tecnologia foi tomando cada função. Primeiro a distribuição (a internet), depois o empacotamento (blogs e redes sociais) – até chegar agora ao coração do ofício, a redação.

Esse processo de gradativa penetração da tecnologia na comunicação social nos lembra de como o jornalismo, embora se apresente como instituição sólida nos setores mais tradicionais da sociedade, é historicamente recente. Pense no jornalismo industrial como uma estrutura que foi central no mercado cultural entre meados do século XIX e o final do século XX, sempre intimamente ligado a revoluções tecnológicas. Nos últimos 20 anos, a transformação digital virou esse ecossistema de cabeça para baixo. Um modelo no qual o Modo IA é só a face mais recente e visível de uma corrosão agressiva, exponencial e irreversível.

O Google foi, de longe, o protagonista nessa invisibilização. O primeiro baque foi em meados dos anos 2000, quando trouxe uma solução mais eficiente de publicidade. O dinheiro dos classificados evaporou. Depois, tornou-se a principal porta de entrada dos sites: não apenas um acesso, mas um intermediário decisivo na forma como as pessoas se informam. No meio disso, o jornal, enquanto pacote institucional, foi sendo consumido pela web.E não foram apenas os classificados que migraram para buscadores e redes sociais. Outras partes do pacote jornal também se dispersaram: previsão do tempo, horóscopo, colunistas. Cada parte acabou montando seu próprio terreno virtual, fora do papel. Com essa bagunça instaurada, alguém precisava assumir a função de instância centralizadora. Quem ganhou esse bastão foi o Google, cuja missão, até hoje, é “organizar a informação do mundo e torná-la universalmente acessível e útil”. Lembra quem fazia isso antes? Pois é. O jornalismo, que mantém sua função social mas perdeu a capacidade de centralizar o debate, passou a se submeter a esse novo jogo.

Um relatório recente da Reuters mostra o quão bem sucedido o Google foi em cumprir a sua missão. Os buscadores são uma das principais portas de entrada para notícias: 45% das pessoas dizem se informar por eles, quase tanto quanto por sites jornalísticos (59%) e TV (57%). E, entre as plataformas, são também os que mais inspiram confiança (55%), muito acima das redes sociais (30%) ou da própria IA generativa (27%). Esse prestígio vem de sua imagem de neutralidade: um lugar universal, acessível e útil, e que deixa de ser apenas um mecanismo de busca para se tornar, agora que consegue entregar tudo com contexto, um mecanismo de respostas. 

Logo, vamos deixar de dizer “eu achei no Google” uma reportagem ou análise sobre o julgamento do STF e passar a dizer apenas “eu li no Google”. E não será só um deslize de linguagem. Será a consagração de um jornal invisível, que se dissolveu na infraestrutura das buscas, como se a informação simplesmente brotasse de lugar nenhum. 

A pergunta que fica é se o jornalismo vai conseguir dar forma visível a esse novo espaço comum. Esse debate precisa acontecer. Do contrário, a febre por inovação pode tirar do jornalismo profissional a função – que parecia intocável nos últimos séculos – de mediar o debate público e de denunciar as sombras daquilo que orgulhosamente chamamos de civilização.


As opiniões emitidas pelo autor não expressam necessariamente a posição editorial da Matinal.
Filipe Speck

Filipe Speck

Filipe Speck é jornalista, co-fundador e diretor da Matinal – além de Hermes no podcast Noites Gregas. Contato: filipe@matinal.org.

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