No meio da emergência que se instalou no Rio Grande do Sul depois das enchentes de 2024, uma voluntária apareceu na TV para falar das necessidades nos abrigos. Entre os itens essenciais, citou a erva-mate. A informação que virou meme pode não fazer sentido para quem não é daqui.
Eu mesma, uma gaúcha de Pelotas que nunca teve o chimarrão como ritual cotidiano, achei graça num primeiro momento. Mas, nos dias seguintes à tragédia, eu voltaria para essa entrevista. E ela faria cada vez mais sentido pra mim.
No dia 10 de maio do ano passado, meu sogro e sua esposa, os jornalistas Pedro Luiz da Silveira Osório e Angela Beatriz Sória, a Bita, vieram morar aqui em casa. A residência deles no Guarujá inundou. Contamos essa história, eu e meu marido, Moreno Osório – também jornalista –, na revista piauí.
Durante sua estada conosco, Pedro resolveu uma série de perrengues, alguns burocráticos – como a busca por auxílios estatais –, outros logísticos, necessários para entrar na casa depois que a água recuou e, enfim, começar a reforma. Além disso, cuidou de Bita com uma dedicação admirável. Sua companheira enfrentava uma condição de saúde frágil, necessitando da ajuda de um aparelho para respirar.
Independentemente do tamanho do desafio do dia, diariamente, Pedro levantava às 5h da manhã para fazer seu chimarrão. Ao final da tarde, tomava o segundo. Depois de 113 dias, ele foi embora sem nunca termos dividido um mate.
Poucos dias depois que o casal conseguiu voltar para casa, Bita teve de ser internada. Ela faleceu no dia 20 de setembro, aos 71 anos. Após seu sepultamento, Pedro passou aqui em casa. Conversamos um pouco sobre como havia sido a cerimônia de despedida, dos relatos que ressaltaram a coragem de Bita, uma jornalista que foi inspiração para muitas colegas da sua geração. Estávamos eu, ele e Moreno. Passada uma ou duas horas, já não lembro, ele levantou para se despedir e disse: “Vou pra casa fazer um mate. Apesar de tudo…”
Naquele momento eu entendi o chimarrão nas cestas básicas doadas para os desalojados. O ritual cotidiano ajudaria milhares de gaúchos arrancados abruptamente de suas rotinas a encontrarem algum ar de normalidade no caos. A âncora que ajudou Pedro e tantos desabrigados a enfrentarem o luto da enchente o ajudaria agora a lidar com a falta daquela que foi sua companheira por mais de 30 anos.
De alguma forma muito fluida e irracional, que só elaborei enquanto comecei a escrever esse texto – que publico agora, mas gestei por alguns meses –, eu aprendi a fazer chimarrão em 2024, depois que a água recuou. Aos 42 anos de idade. Não só aprendi, como faço todos os dias. Ou quase todos.
Uma manhã ideal é quando consigo tomar chimarrão sem fazer mais nada. Sem olhar no celular, sem preparar a comida, sem realizar micro tarefas domésticas. Só sentar, abrir o bico da garrafa, servir a água, fechar a garrafa, sorver até roncar, abrir o bico da garrafa, servir a água… Uma âncora no presente. Um ansiolítico natural.
O ano da enchente para o RS foi o ano do mate para mim. “Peraí que ainda não tomei meu mate”, podem me ouvir dizer ainda pela manhã. “Não deu tempo nem de tomar meu mate”, digo em dias muito corridos. O chimarrão virou um novo marcador de tempo na minha vida.
Assim como a enchente. Existe o antes e o depois do avanço das águas. Como pessoas e como cidades, somos outros depois das cheias. Nem melhores, nem piores. Um ano depois, estamos ainda aprendendo a lidar com esse luto.