Pular para o conteúdo

Ricardo Silvestrin: "A casa abriga todos os poemas"

Ricardo Silvestrin: "A casa abriga todos os poemas"
Imagem: Reprodução / Bestiário

Cantor e escritor, Ricardo Silvestrin faz pocket show na 71ª edição da Feira do Livro de Porto Alegre na quarta-feira (5/11), às 19h, e autografa Casa de origami na outra quarta (12/11), livro publicado pela editora Bestiário. A obra, segundo ele, contém parte de um "destino incerto que fez aparecer e desaparecer um amigo especial". Editor da Parêntese, Luís Augusto Fischer conversou com Silvestrini a respeito do escritos. Leia abaixo, na íntegra.

Luís Augusto Fischer – De onde saiu essa nova forma, esse formato tão interessante, que acabou tomando conta de todo o livro? É uma briga com o soneto ou uma reconciliação com ele?

Ricardo Silvestrin – Surgiu de um procedimento criativo que eu já havia feito na construção de uma série de poemas, no meu livro Typographo, de 2016. Ali escrevi poemas em cima da métrica de músicas do US3, grupo de jazz rap inglês. Buscava na ocasião a diversidade e mesmo a disparidade de metros dentro do mesmo poema, coisa que fica acentuada nas dicções de rap, com diferentes tamanhos de fala, do US3. No Casa de origami, busquei os metros presentes em algumas melodias de músicas de jazz e, por fim, me fixei numa chamada Fascinating Rhythm, dos irmãos George e Ira Gershwin. 

Comecei escrevendo poemas em cima da melodia dessa canção. Os 14 versos vieram daí. Mas poderiam ser 28, uma vez que cada verso pode ser transcrito como dois, pois há um jogo melódico que permite isso. Ou, como preferi, grafar o conjunto inteiro, não partido, que também é possível, pois se canta cada dupla sonora como uma só. Desses 14 versos, 12 têm a mesma métrica. Na canção transcrita, poderia variar entre 11 e dez e até nove sílabas, como foram os primeiros experimentos que fiz. A seguir, fixei em dez sílabas para cada um desses 12 versos. No sétimo verso, fixei com apenas uma sílaba. Ela marca a percussão que tem na virada da melodia. Essa percussão é uma batida no piano, na execução de Oscar Peterson, versão da música que me serviu de guia, pois, como é tocada apenas com piano, cada nota da melodia é percebida. E o último verso tem cinco sílabas métricas, pois é assim que se comporta no fechamento da melodia. 

Em resumo, é como se cada poema do livro fosse uma letra alternativa à letra de “Fascinating Rhythm”. É possível cantar cada um em cima da melodia. É claro que o resultado desse procedimento criativo não foi fazer novas letras à canção, mas sim encontrar um conjunto de poemas: 70 que se aproximam do soneto. Há duas formas clássicas, o soneto italiano, com quatro estrofes, distribuídas em duas de quatro versos e duas de três versos; e o soneto inglês, distribuído em três estrofes de quatro versos e uma de dois versos. O meu ficou com três estrofes: uma de quatro versos, uma de sete versos e outra de três versos, isso em função do andamento da melodia da qual se originou. O soneto inglês passou a ser conhecido como shakesperiano. Brinco que o meu é o soneto portoalegrês, ou soneto ricardiano. Mas se deu tudo como naqueles casos que mostram a relação entre ciência pura e ciência aplicada. Eu estava pesquisando uma coisa, a métrica de canções de jazz, tendo me fixado na de Fascinating Rhythm, e acabei achando esse tipo de soneto. 

Entrevistas com autores da Feira - Matinal
Tudo o que você precisa saber sobre Porto Alegre e RS. Inscreva-se nas newsletters Matinal News, Juremir Machado, Roger Lerina e Parêntese.

Confira todas as entrevistas da série

Luís Augusto Fischer – Tua relação com o mundo oriental, japonês em especial, tem uma vasta trajetória. Pode contar em breves palavras o que já rolou?

Ricardo Silvestrin – Essa relação também começou de maneira acidental. O poeta e artista visual Xico Zorzo, que financiou a publicação do meu primeiro livro, Viagem dos Olhos, de 1985, ao ler o original disse que meu poema 32° (“na rua da praia/todo olhar con/vida a mar”), era o haicai para a cidade de Porto Alegre. Eu perguntei o que era exatamente um haicai, palavra que já me era familiar, mas que não sabia exatamente do que se tratava. Ele me mostrou a biografia do mestre do haicai japonês, Matsuó Bashô, escrita pelo Leminski. Eu havia chegado aos poemas curtos, de dois, três versos, através das leituras de Oswald Andrade, Drummond e Quintana. A partir do conhecimento de Bashô foi que comecei a dialogar conscientemente também com o haicai. Lancei Bashô um santo em mim, em 1988, todo de haicai. Depois há seções com haicais nos meus livros Quase eu, de 1992, e Palavra mágica, de 1994, juntos como poemas de tamanhos variados. 

Retomei esse tipo de poesia só em 2017, lançando Prêt-à-porter, haicais para as quatro estações, e em 2022, com Dinastia Mim, ambos livros só de haicais. O de 2017 já estava escrito desde 2000. A publicação do Prêt-à-porter e também os estudos do professor Andrei Cunha, com seus livros sobre a literatura japonesa e suas traduções de tankas, como no Cem poemas de cem poetas, e do poeta nissei Edson Kenji Yura, com seu livro de ensaios Cesto de Caquis, me reanimaram a pensar sobre o assunto e a criar novamente haicais, o que resultou no Dinastia Mim. Além disso tudo, a inclusão de poemas meus no livro Haicais Tropicais, organizado pelo poeta Rodolfo Guttilla para a Cia das Letras em 2018 foi um estímulo para eu retomar o haicai. Casa de origami traz no nome uma relação com a arte da dobradura em papel oriental. Também há um poema do livro, Mestres, em que cito “o mestre do haicai japonês” e “a curitibana”, alusões a Bashô e à poeta e grande haicaísta Alice Ruiz. 

Luís Augusto Fischer – Falando no nome do livro, Casa de origami: tem algo a ver com o homenageado do livro, Antonio Cicero?

Ricardo Silvestrin – A expressão “casa de origami” é parte do terceiro verso do poema Recorte presente no livro. Estava buscando um título e gostei tanto da sonoridade quanto da sugestão de significação, como cada poema sendo uma dobra desse origami-casa. A casa abriga todos os poemas.  Outra opção de título era “Forma movediça”, que é o último verso do poema Fixação. Achei “Casa de origami” mais alegre e um título mais bonito, embora os dois dessem conta dessa forma fixa, clássica, com metro fixo, mas em movimento, com dobras, em transformação. 

Sobre a relação com o poeta Antonio Cicero, o livro é dedicado a sua memória. Relatando brevemente: fixar em Fascinating Rhythm, como falei acima, se deu quando eu estava escrevendo os últimos poemas do Irmão Robô, no meio de 2023; o livro foi lançado em maio de 2024. Não incluí o poema no livro e guardei-o como matriz para algo a ser desdobrado posteriormente. Retomei esse projeto após a morte do poeta, que nos últimos 15 anos mostrou um grande interesse pelo meu trabalho.

Cicero publicou cerca de 20 poemas meus no seu blog. Citou o meu nome em entrevistas como um dos seus poetas contemporâneos preferidos. Indicou meu nome mais de uma vez para o prêmio Machado de Assis pelo conjunto da obra na Academia Brasileira de Letras, conforme me relatou. Participou da homenagem que fizeram a mim na Ocupação Poética, no Teatro Cândido Mendes, no Rio de Janeiro, e do lançamento do meu Carta aberta ao demônio, também no Rio. Citou meu poema “não quero mais de um poeta” nos seus cursos sobre poesia, na ABL e em publicações. Ligava para mim dizendo que tinha citado. Como eu não poderia, dessa vez, comemorar um novo livro meu com ele, dediquei à sua memória, que é, na verdade, um conjunto de ótimas memórias que tenho do seu convívio. Nas associações de sentido, sim, a casa de origami como algo que “surge à minha frente um mundo impensado”, contém parte desse destino incerto que fez aparecer e desaparecer um amigo tão especial. 


A programação completa da 71ª edição da Feira do Livro de Porto Alegre está disponível no site do evento.

Luís Augusto Fischer

Professor e editor da revista Parêntese.

Todos os artigos

Mais em Entrevista

Ver tudo

Mais de Luís Augusto Fischer

Ver tudo