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A naturalização do absurdo

STJD manda recado para os atletas: "podem fraudar"

A naturalização do absurdo
Bruno Henrique (reprodução)

A discussão sobre o cartão forçado de Bruno Henrique já era grave. O jogador admitiu ter buscado um amarelo por conveniência pessoal, e muita gente tratou isso como algo pequeno, quase folclórico. Mas a situação ficou ainda mais séria depois do julgamento do STJD. Mesmo com indícios levantados pelas próprias casas de aposta, mesmo com mensagens no celular do irmão, mesmo tendo sido condenado antes por manipulação, Bruno Henrique foi absolvido da acusação de fraude ligada a apostas. A suspensão caiu. Sobrou apenas uma multa de cem mil reais, valor que não representa punição real para um atleta desse nível.

Esse desfecho abre uma porta perigosa. Mais do que absolver um jogador específico, o STJD mandou um recado direto ao futebol brasileiro. A partir de agora, o sinal está claro para todos os atletas. Podem forçar cartão, podem manipular pequenos eventos do jogo, podem atuar na zona cinzenta das apostas, porque nada sério acontecerá. No limite, no máximo, uma multa. Nada de suspensão longa, nada de impacto na carreira. O tribunal institucionalizou o risco zero. E quando o risco é zero, a tentação cresce.

O tribunal tentou se justificar dizendo que não há provas suficientes de intenção. Só que o futebol moderno não é mais feito apenas de manipulação de placares. A indústria das apostas vive de escanteios, faltas, cartões, arremates. Manipular eventos isolados já é suficiente para movimentar milhões. Fingir que isso não existe é fechar os olhos diante da realidade. E o STJD optou por fechar os dois, enquanto o esporte perde credibilidade a cada episódio.

A absolvição é simbólica. Mostra como o sistema está contaminado e como a ética do jogo virou detalhe. Se não alterou o placar, está liberado. É essa a nova moral do futebol brasileiro. Uma moral que não protege o esporte, protege o mercado.

E a mídia, que deveria ser a primeira a denunciar isso, está de mãos atadas. O motivo é simples. As casas de aposta patrocinam praticamente tudo. Programas de TV, transmissões, podcasts, canais esportivos, perfis de influenciadores. Na prática, boa parte do jornalismo esportivo virou vitrine dessas empresas a até mesmo as análises dos comentaristas são feitas em cima de cotações das apostas e quando quem te paga depende de um ambiente sem perguntas difíceis, a crítica desaparece. O silêncio não é coincidência, é consequência.

O episódio Bruno Henrique deixa isso escancarado. Um caso que deveria provocar indignação virou pauta tratada com cuidado extremo. Muitos comunicadores nem tocam no assunto. Sabem que qualquer crítica sólida às apostas incomoda patrocinadores. E incomodar patrocinador virou problema. O torcedor, mais uma vez, fica sem explicação clara.

Assim o absurdo se naturaliza. Primeiro, o cartão forçado vira bobagem. Depois, as mensagens no celular do irmão são tratadas como mal-entendido. No fim, a absolvição é apresentada como decisão técnica, quase inquestionável. O futebol aprende a conviver com esses desajustes morais. Aprende a aceitá-los. Aprende a fingir que nada aconteceu.

O problema não é só o jogador, é o precedente. A partir de agora, qualquer atleta sabe que que o tribunal não pretende enfrentar o tema com rigor. Sabe que manipular pequenos eventos do jogo não traz consequência real. O STJD, querendo ou não, enviou o pior recado possível: podem fraudar, porque nada vai acontecer.

Se o futebol brasileiro não reagir, vai afundar no mesmo buraco que outras ligas já enfrentaram quando ignoraram os primeiros sinais. As apostas estão em todo lugar, a mídia está amarrada, os clubes estão dependentes, e a Justiça Desportiva acaba de mostrar que não é capaz de proteger o jogo.

O caso Bruno Henrique virou um marco. Não pela gravidade do fato em si, mas pela mensagem que ficou. A linha ética foi apagada. Quando isso acontece, o absurdo deixa de ser exceção e vira rotina.

Nando Gross

Nando Gross

Jornalista e comentarista esportivo, com passagem por algumas das mais importantes emissoras de rádio do país. Contato: nandogrossjornalista@gmail.com

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