Pular para o conteúdo

Armand Mattelart, intelectual comprometido e sem omissões

Morreu o pensador nascido na Bélgica e muito ligado à América Latina

Armand Mattelart, intelectual comprometido e sem omissões
Imagem: Reprodução Xerfi Canal

Guardo uma imagem simpática de Armand Mattelart, que morreu na última sexta-feira, 31 de outubro de 2025. Belga, autor de livros importantes sobre comunicação, consagrou-se internacional com “Para ler o Pato Donald”, em parceria com o argentino Ariel Dorfman.

Nesse livro, ele e Dorfman mostram os aspectos ideológicos dos personagens de Disney. No final dos anos 1990 ou começo dos anos 2000, convidei Armand e Michèle Mattelart para vir a Porto Alegre falar no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da PUCRS. Vieram. Foram dias de alegria e aprendizado.

Mattelart e Michèle nos receberiam depois no apartamento deles, na rue Payenne, no Marais, em Paris, junto à Capela da Humanidade, templo da religião sem deus criada por Auguste Comte em sua paixão por Clotilde de Vaux, que teria vivido em morrido no terceiro andar do prédio em questão, embora haja controvérsia, sendo o mais provável que o endereço correto fosse o habitado longo depois pelos Mattelart.

Era um homem muito inteligente e cordial. Havia sido professor nas Universidades Paris VII e Paris VIII, tendo começado a lecionar no Chile, até ser expulso com o golpe do famigerado general Augusto Pinochet. Mais tarde, trabalharia na Universidade de Rennes.

Em 2005, assinou o “Manifesto de Porto Alegre”, resultado do Fórum Social Mundial daquele ano, que propunha um outro tipo de sociedade com base na solidariedade e não na competição e no lucro.

Convenci meu amigo Luís Gomes, da editora Sulina, a publicar um livro de Mattelart, “História das utopias planetárias” (2002).

Escrevi a orelha do livro:

A utopia é como um longo rio sem fim que esparrama nutrientes nas suas margens, reinventando a vida e o sonho a cada derrame. Quando se pensa que a última semente morreu, a esperança floresce novamente em terras até então adormecidas. O cultivo nem sempre garante colheitas fartas, mas, mesmo quando o fracasso ceifa a plantação, o essencial é alcançado: a fartura da crença num mundo melhor. 
“Em História da utopia planetária, o belga Armand Mattelart, intelectual de prestígio e de grande influência no pensamento latino-americano, sempre comprometido com as lutas por um outro mundo possível, retraça os sulcos das grandes construções voltadas para o futuro. Enciclopédia da ilusão, mas principalmente do combate por um amanhã radicalmente diferente, o livro não deixa escapar nada em termos de projetos gestados uma vez para o parto do sempre.
“Mattelart, com um texto elegante e riquíssimo em informações, não faz doutrinação nem propaganda. Contenta-se em descrever, analisar, reconstruir, mostrar como se sonhou ontem as entranhas do amanhã. Isso basta para que que o leitor se ponha imediatamente a viajar, a fantasiar, a desejar, a crer que os dados nunca estão lançados. O irreal é a melhor medida da realidade a ser arrancada do solo das contradições sociais. 
História da utopia planetária, já nasceu clássico. Um livro para figurar nas melhores bibliotecas como um documento intemporal. Registro de uma capacidade indestrutível da humanidade, a de não se conformar, de nunca parar de gestar a transformação. A obra de Mattelart indica que o homem, produtor de imaginários, tem por imaginário central a imaginação a serviço do aparentemente impossível: o irreal que se torna real pela suprema vontade de superação do aqui e do agora”.

Terminava com minha reverência ao grande pesquisador: “A sua reflexão, porém, nunca estancou e até mesmo se disseminou por vários campos da sociologia da cultura e da comunicação. Prova disso é esta monumental História da utopia planetária, trabalho rigoroso de pesquisa e de contextualização. Leitura obrigatória para todos os que realmente acreditam na realidade da utopia de um outro mundo possível. Cultivar a utopia frutifica a cultura”.

Em algum momento, perdi o contato com ele. Cláudia e eu, volta e meia, ainda usamos uma expressão que ele utilizava com frequência quando alguma coisa o surpreendia em Porto Alegre: “Quelle histoire”!

Armand Mattelart estava com 89 anos de idade.

Aprendi com ele que um intelectual não se omite.

Juremir Machado da Silva

Juremir Machado da Silva

Jornalista, escritor e professor de Comunicação Social na PUCRS, publica semanalmente a Newsletter do Juremir, exclusiva para assinantes dos planos Completo e Comunidade. Contato: juremir@matinal.org

Todos os artigos

Mais em Opinião

Ver tudo

Mais de Juremir Machado da Silva

Ver tudo