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Tempo dos desenganos

Crônica da passagem relativa do tempo

Tempo dos desenganos
Refletir sobre o tempo em Montpellier, cidade histórica da França/Foto Ana Rodrigues

É nessa idade que começam os tiques e os desenganos, provando que antes se vivia mergulhado em enganos. Que idade é essa? Aquela em que se descobre a existência do colesterol e a importância de ter em casa um aparelho para medir a pressão. Há conversas cifradas para quem ainda vive na ilusão da saúde perfeita e do reconhecimento social.

– Fez ablação?

– Não. Já me bastam as abluções de cada dia.

– Então colocou marcapasso?

– Não, mas estou caminhando uma hora por dia.

– A que velocidade?

– Dois quilômetros e meio por hora.

– É muito pouco. Precisa dobrar.

– Essa agora é a minha grande meta.

Nomes estranhos impronunciáveis brotam dos lábios: Propanolol, Atorvastatina, Anna Karenina, ressonância magnética com estresse. Já não se crê no tetracampeonato brasileiro do Inter antes de 2029, quando se festejará o tri de 1979, nem na inocência de Brigitte Bardot quando Deus criou a mulher num filme do cinema europeu, muito menos na dedicação dos políticos ao bem público. Aliás, é preciso explicar para os jovens quem foi Bardot e o sentido da expressão “bem público”. Em breve se terá certamente de contar o que era o cinema: modo de expressão com imagens e sala onde se viam filmes no escuro, com um videozinho, só que maior, com atores profissionais e um roteiro.

Promete-se emagrecer a cada começo de ano, inscrições em academias de ginásticas substituem os pendores pela filosofia enterrados com a leitura de Nietzsche e retomados com Michel Foucault, muda-se de percepção sobre viagens: ama-se ter viajado, detesta-se ter de viajar. A vida ganha nuances, contornos, meias de compressão.

É nessa idade que os médicos deixam de receitar remédios por uma semana, contentando-se com duas expressões para esclarecer espantos:

– Uso contínuo ou para sempre.

Também se ouve “pelo resto da vida”. A vida é um resto. Como todo resto, deve ser conservada, medida, auscultada, controlada por especialistas. Descobre-se que se fez tudo errado. Ouve-se: “Está caminhando errado” ou “se continua falando assim vai estourar a voz”.

Já não se pensa no Nobel, restando a entrada numa academia como compensação: a Brasileira, a estadual, a de ginástica. Tudo se negocia, até mesmo a imortalidade, que passa do sucesso eterno à possibilidade de não desencarnar e de ficar por aqui mais um bom tempo. É quando romancista vira cronista, cronista vira poeta, poeta vira tuiteiro e toda mensagem tem a urgência de um eletrocardiograma.

A vida anda por um fio, da navalha ou do bisturi, enquanto tudo mais funciona no wi-fi. É nessa idade que se passa a dizer no meu tempo e a perder tempo fazendo inventários do irrecuperável.

As urgências ficam ridículas, salvo a dos hospitais, e o tempo já não se mede pelas conquistas profissionais, mas pelas releituras. Não há tragédia nessa metamorfose. Nem desespero. Viver é não ter pressa de morrer. Os bancos já não falam de investimentos, mas de aplicações sem inventário nem impostos de transmissão. É nessa idade que, depois do tempo dos colegas, dos amigos e dos colegas, volta-se para a família, ponto de partida e de chegada quando tudo deu certo.

É nessa idade que se troca o humor pela ironia, o cinismo pelo ceticismo, o culto do futuro pelo amor ao presente e a certeza pela dúvida, ainda que alguns teimem em ter certeza de que duvidam.

É nessa idade que alguns recomeçam a ouvir Jovem Guarda.

“Parece que eu sabia que hoje era dia...”

As opiniões emitidas por colunistas não expressam necessariamente a posição editorial da Matinal.
Juremir Machado da Silva

Juremir Machado da Silva

Jornalista, escritor e professor de Comunicação Social na PUCRS, publica semanalmente a Newsletter do Juremir, exclusiva para assinantes dos planos Completo e Comunidade. Contato: juremir@matinal.org

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