Assim que o ônibus saiu da rodoviária, tomei dois comprimidos de Diazepam, único jeito de suportar as dezenove insuportáveis horas de viagem pela frente. Adormeceria antes da primeira parada em Sombrio, embalada por Nei Lisboa e suas canções de não ninar.
Tudo é caminho, deixa o bicho, tudo é vontade de acertar.
Sentou ao meu lado uma mulher jovem e corpulenta, com muitas sacolas e uma menina aparentando ter a idade da minha, que ela ajeitou em seu colo com cuidado. Fiquei espremida contra a janela, com a cabeça apoiada num travesseiro, mas não me importei, sorri para a menininha que retribuiu, deixando escapar da boca a chupeta cor-de-rosa. Do seu nariz, escorria um fio de muco amarelado. Estava gripada, explicou a mãe, procurando um lenço de papel em uma de suas sacolas. Minhas crianças também estavam gripadas, tínhamos passado o final de semana debaixo das cobertas, entre bolachinhas recheadas e antitérmicos, torcendo pela menina Dot e sua baleia encalhada em praias australianas. Mas eu não podia ficar em casa, naquela semana seria meu o seminário semanal e obrigatório da pós-graduação. Eu finalmente estava cursando o doutorado.
Minha orientadora se chamava Maria, uma jovem professora da Fundação, filha do casal de pesquisadores e professores sêniores que coordenava o serviço onde trabalhei como consultora após não ter sido aproveitada como docente. Quando comecei meu trabalho ali, eu ainda sonhava com a Université Paris-Sud e Maria tinha recém retornado de São Paulo, onde concluíra o doutorado na mesma universidade onde eu havia tentado mestrado com Antony uns poucos anos antes. Logo, ela me convidou para ajudá-la na implementação de alguns modelos experimentais no seu laboratório e participar como ouvinte em disciplinas do curso de mestrado da Fundação. Ainda que fosse em outra área, eu era a única pessoa com mestrado já pronto por ali, Maria valorizava isso e, também, minha experiência com Antony, de quem ela conhecia o trabalho. De minha parte, me apaixonei pelo campo de pesquisa de Maria. Gostava dela também, da forma como me explicava as coisas. Mesmo sendo ela um tanto distante, eu a sentia como uma quase igual, uma mulher em luta, mãe de uma menina.
Mas, ao mesmo tempo em que ofereciam oportunidades, Maria e seus pais eram também territoriais, e me parecia que qualquer pessoa nova no grupo representava uma ameaça, alguém a ser neutralizado, especialmente se esse alguém fosse jovem, ambicioso, achasse que sabia alguma coisa e podia sugerir mudanças, o que era o meu caso. Demorei a perceber que eu era vista como uma pessoa arrogante, até o dia em que Maria o disse sem meias-palavras. Quem eu pensava ser? Com toda a minha pose, não estava sendo capaz de escrever um projeto de pesquisa para submeter a uma agência de financiamento, conforme ela havia pedido. Eu tinha recém terminado o mestrado, nunca tinha escrito um projeto daquela natureza, não estava sendo fácil, tentei justificar. Mas eu me achava boa, não? Tinha aceitado a incumbência, precisava destrinchar. E o que estava apresentando não era bom. Quando encerrou sua fala, Maria tinha o pescoço e o colo coalhados de manchas vermelhas, eu quase não a reconhecia. No dia seguinte, o Senhor, pai de Maria, me comunicou que não poderia mais pagar a bolsa que eu vinha recebendo, eu estava dispensada. Fui para casa, me enrolei no sofá, e chorei até a hora de pegar as crianças na creche.
Eu gostava da Fundação, não conseguia entender o acontecido. Tinha encontrado ali o meu foco, não aceitava ser descartada. Pensava ter feito amigos, ainda que improváveis, pessoas que viviam em um mundo onde se tomava espumante à toa, pessoas que não entendiam meu desejo de ser professora em uma universidade pública. Será que eu tinha ideia do que representava viver exclusivamente da aposentadoria de professor de universidade federal? Não, eu não tinha. Mas sabia o que era viver de uma descarnada pensão do INSS. Sabia o que era ser filha de uma mãe viúva de um homem que trabalhou duro como autônomo pagando a previdência mínima. Sabia que a vida acaba sem aviso, desampara. Não queria riqueza ou espumante com as refeições, queria segurança para mim e para meus filhos. Podiam me achar pequena, eu achava que podia ser grande. E sabia que só o seria se me apaixonasse, e o que me apaixonava era feito nas universidades, e a estabilidade estava no serviço público, meu lugar estava numa universidade pública. Mas para entrar precisava ser doutora, e eu lutaria por isso.
Maria ficou surpresa quando, alguns dias depois daquela tarde em que o Senhor me dispensou, voltei à Fundação e pedi para conversar. Apesar de tudo, ela estava calma e me recebeu, era educada. Talvez também tenha sentido um pouco de pena de mim, me vendo chegar quase humilde. O fato é que seus olhos miúdos sorriram quando ela compreendeu a minha proposta.
Propus que ela solicitasse cadastro como professora orientadora no programa de pós-graduação no qual obtivera seu doutorado em São Paulo e eu, então, prestasse seleção postulando ser sua orientanda. Mas nenhuma de nós se mudaria para lá, seria uma espécie de doutorado sanduíche. Eu iria a São Paulo apenas para cursar as disciplinas, a tese poderia ser desenvolvida nos laboratórios da Fundação. Maria era muito bem vista em São Paulo, eu sabia disso, tinha conhecido seu orientador, Roberto, numa visita que ele fez à Fundação, tinha tomado espumante com os dois em um jantar para o qual fui convidada antes de ser chamada de arrogante e incapaz.
Nós duas só tínhamos a ganhar, ela concordou. Prontamente entrou em contato com o pessoal de São Paulo e eles aceitaram o arranjo com a ressalva de que eu precisaria ter um co-orientador lá e, claro, passar pelo processo seletivo que constituía na análise do currículo, de uma proposta de projeto de pesquisa com a extensão de três páginas e de uma carta explicando minhas motivações. Tudo encaminhado pelo correio. Fui aprovada sem dificuldades. Meu co-orientador seria Roberto.
Só acordei plenamente, quando o ônibus estacionou na rodoviária, o motorista gritando que todos deviam desembarcar. A mulher e a menininha não estavam mais, talvez tivessem ficado em Taboão da Serra. Senti um forte cheiro de azedo e a minha blusa úmida, olhei para o chão e vi vômito. Imaginei a menininha passando mal, vomitando em cima de mim, eu sedada, a mulher socorrendo a filha, tentando me acordar, limpando minha blusa com um lenço umedecido. Por um momento, tive pena de nós três, mas não podia me demorar em sentimento algum, ainda sonolenta me misturei aos outros passageiros em busca da mala no bagageiro. Bagagem resgatada, ajustei meus fones auriculares e segui com Vitor Ramil até a Estação Tietê do metrô, onde outros viajantes usavam os cotovelos para vencer urgências ou conseguir um lugar para atravessar sentados os subterrâneos da cidade.
E vais e vens
Como um lampião
Ao vento frio
De um lugar qualquer
Minha malinha, meu travesseiro, eu e meu cheiro azedo descemos na Estação Brigadeiro, após troca de linha na Estação Paraíso. Eu me hospedava no apartamento de uma amiga, próximo da Avenida Paulista, não longe do MASP, um canto para amar São Paulo. Naquela tarde, demoraria no apartamento apenas o necessário para largar minhas coisas e tomar um banho rápido, não podia seguir fedida para a universidade, onde, muitas estações de metrô depois, me aguardava minha mesinha de doutoranda. Todos os dias, a multidão solitária nas plataformas e a luz néon refletida nos trilhos, engolida pela boca escura dos túneis, me fascinavam e oprimiam ao mesmo tempo. Minha mesinha também.
Nos finais de tarde, eu estava quase sempre exausta e era bom chegar no apartamento de minha amiga Marinês, e encontrá-la cozinhando, refogando aspargos frescos, o que não acontecia muito porque os horários de trabalho dela algumas vezes invadiam a noite ou ela era invadida pela noite de São Paulo. Quiçá fosse o contrário e ela, habituada à solidão, evadisse na noite paulistana para evitar a minha presença, os fios dos meus cabelos pretos perdidos pela casa, por mais que eu os recolhesse. Quase certo que sim, eu sentia e me incomodava, queria ser invisível, não precisar dela. Mas precisava, e Marinês não dizia nada, condimentava nossa vida com alho frito e alecrim, porque era sobretudo solidária, trazia consigo uma solidariedade atávica, fortalecida no movimento estudantil em tempos de Diretas Já. Nos conhecíamos desde a graduação, quando moramos juntas na Casa da Estudante em Porto Alegre. Ela, filha de pequenos agricultores, descendentes de colonos italianos na serra gaúcha; eu, uma pelo-duro, a alcunha que se dava aos nascidos nos campos de cima da serra, uma gente morena que traz desterros no sangue. Uma ousadia nós duas acontecendo na Pauliceia.
Stela Rates é escritora e pesquisadora.
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