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Nostalgia por um ferro-velho

Parêntese #301

Nostalgia por um ferro-velho

Se existisse um mapa para representar o mundo da minha infância, nele haveria, em destaque, um ferro-velho.

Não lembro o nome, talvez nem tivesse. Ferro-velho é ferro-velho. Os outros comércios da redondeza eram batizados. Na Porto Alegre do final dos anos 1970, na avenida Bento Gonçalves, entre a Silvado e as cercanias da Aparício Borges, funcionavam estabelecimentos que constariam no meu planisfério afetivo: lancheria Guerreiro, farmácia Popular, bazar Padre Reus, supermercado 41, bar Dois Irmãos, padaria Pão Dourado, tabacaria Dunga, drogaria Tages, uma filial dos Correios, loja Irmãos Masiero, supermercado Dosul... Alguns esqueci o nome, como a gráfica de um conhecido dos meus avós e a borracharia de um português que trabalhava com as duas filhas.

O ferro-velho aparentava bagunça, falta de acabamento e sujeira. Sujeira até concordo, mas os clientes mais habituais, grupo ao qual me filiava, não aceitariam depreciações à ordem do estabelecimento.

Bastava um pouco de boa vontade para perceber os amontoados próprios de cada metal. Na parte coberta, ficavam os jornais, além de um sofá chechelento e cadeiras capengas para bem receber os frequentadores. Os vidros ocupavam dois espaços que classificaria como Setor de Qualquer Vidro e Departamento de Garrafas Intactas.

O vô assinava o Correio do Povo, jornalão formato standard cujas edições empilhava e amarrava em fardos. Quando chegava a um volume razoável, usávamos o carinho de mão para levar até o ferro-velho. O dinheiro da venda ficava todo para mim.

Meus rendimentos cresciam com outras mercadorias. Canos de chumbo, por exemplo. Outro metal bem cotado era cobre, mas daí dependia dos restos dos consertos que a CEEE realizava na rede elétrica. Quando os eletricitários apareciam, eu logo ficava a postos, atento para recolher os pedaços de fio desprezados.

Havia um preparo antes da transação. Nos fundos do pátio de nossa casa, eu amassava folhas de jornal, sem compactar demais, e ateava fogo. Depois de alimentar a chama com galhos secos, colocava os fios para derreter o plástico que revestia o cobre.

Não conseguia muitas garrafas para vender. Naquela época, refrigerantes e cervejas tinham o casco retornável, então não sobrava. Em casa, pouco se bebia vinho. Destilados eram raríssimos. Minha especialidade, portanto, consistia no comércio de jornal e cobre.

Um detalhe me chamava a atenção. Garrafas de uísque com selo intacto alcançavam boa cotação naquele comércio peculiar. Lembrei disso nas últimas semanas, quando vieram à tona casos de intoxicação provocadas por bebidas adulteradas com metanol.

Naquele tempo, o lance não matava. Me parece que se tratava apenas de bebida fajuta em garrafa de produto valorizado. Se alguém tomasse com entusiasmo, talvez amargasse uma ressaca das brabas, mas seguiria vivo e se embriagando mais. No entanto, rememoro algo quando vejo notícias sobre metanol.

O ferro-velho, no mapa da minha infância, era um lugar onde uma criança se divertia vendendo jornais e os fios que os trabalhadores da CEEE deixavam espalhado na rua. Se atualizarmos as informações, em tempos de bebidas adulteradas e que podem matar, em tempos de furto de fios de energia, o meu saudoso comércio não seria o ambiente mais recomendado para um garoto.


As opiniões emitidas pelo autor não expressam necessariamente a posição editorial da Matinal.

Vitor Necchi

É escritor e jornalista.

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