Saí da sessão do filme O Agente Secreto com várias dúvidas. São perguntas que me fiz durante o filme para que a história tenha sentido, mesmo vendo tubarão engolindo perna ou a “perna cabeluda” matando amantes na praça, ou seja, mesmo que mitos e lendas façam parte do roteiro. Mantenho um velho hábito de procurar sentido lógico nas coisas, mesmo sabendo que em obras de ficção faz parte do jogo provocar a imaginação do espectador. Será que um filme tão badalado, feito por gente tão experiente, poderia ter furos em seu roteiro?
Primeiro levei algumas das minhas dúvidas a amigos próximos, tendo o cuidado de avisar que continham informações relevantes que podem estragar surpresas postas pelo filme, os famosos spoilers. Depois fui procurar vídeos que comentassem o enredo do filme. Aí descobri que existem muitos canais de internet dedicados aos filmes e séries. Muito mais do que imaginava. Algo até comparável aos canais dedicados ao futebol brasileiro, o que é um sinal da vitalidade da indústria do audiovisual. E um sinal de há muita gente se dedicando a tentar ganhar dinheiro com isso.
Assistindo às resenhas faladas mantive minhas dúvidas, mesmo considerando a hipótese de que a história tenha sido contada a partir do ponto de vista da pesquisa que as duas jovens faziam sobre material de época. Por comentários vários, vi que a confusão sobre os “fatos” narrados não é só minha.
Exemplifico algumas das dúvidas para a conversa não ficar muito no ar, com novo aviso de spoilers:
- O personagem principal inicia o filme voltando de carro para o Recife. De onde vinha mesmo? Ele diz que estava há três dias na estrada num fuscão. Teria de ser de algum lugar há mais de dois mil quilômetros, mesmo sem estradas duplicadas como temos hoje. Numa resenha foi dito que era de São Paulo, noutra de Brasília.
- Ao voltar para sua terra em pleno carnaval, vai se esconder em abrigo para refugiados. A sinopse do jornal informa que “Marcelo se muda para Recife para fugir de um passado violento”. Que passado violento seria esse? De que mesmo ele se esconde? Essa dúvida pode ser a grande pergunta do filme a ser preenchida pela plateia. Eles se refugiavam do que mesmo no tal abrigo? Do regime político também conhecido como ditadura militar, que só aparece pela foto do presidente da República ou pela presença do diretor da Eletrobras? A plateia vê surgir o personagem malvadão em São Paulo, contratando matadores de aluguel para executar o personagem principal (o Bonzinho da história). Mas o pacato professor universitário só sabe disso depois.
O malvadão destilava ódio na contratação dos matadores que se dirigem ao Recife. O bonzinho retribui o ódio ao ser informado que havia assassinos profissionais na história, em meio ao Carnaval. “Não sou agressivo, mas matava com martelo”. (O espectador que gosta de filmes com banhos de sangue poderia até vibrar com essa fala.) Seria uma nova versão do dragão da maldade contra o santo guerreiro?
- Nosso herói, o bonzinho, vai trabalhar num setor de identificação da Polícia Civil, no centro do Recife. Que lugar mais estranho para se esconder, para se refugiar. Ao longo da trama aparece uma organização internacional de direitos humanos, que teria conseguido o emprego pelo qual poderia saber coisas de sua finada mãe. Que raios de organização colocaria seu protegido nas barbas dos malvados policiais da Polícia Civil pernambucana? E ainda por cima vão montar uma delegacia de polícia falsa em pleno carnaval, para pegar um depoimento de uma patroa relapsa que remete a um caso contemporâneo de hoje e não da época. (Sim, tudo bastante fantástico.)
Depois vemos que os meganhas do Recife eram amigos dos matadores do sul. E acabam perseguindo um dos matadores contratados, e talvez até matando o bonzinho no final. Só sabemos o que saiu no jornal: que foi morto a tiros e que tinha sido acusado de corrupção. Ele estaria fugindo da polícia que investigava sua vida e iria ficar tão próximo dos meganhas do Recife? Não, né?
- Nosso herói revela-se um cabeludo pesquisador universitário, chefe de um departamento de uma universidade pública de Pernambuco. Era da UFPE, certo? Era um departamento bem eclético, pois tinha pesquisa em couro de gado e em bateria para carro elétrico que usa lítio. Esse fato dá margem para uma grande fala do malvadão paulista, empresário e diretor da Eletrobras (sim, tudo junto): que a pesquisa científica no Nordeste deveria priorizar o tratamento de couro de bode e não se meter com carro elétrico. É o tema do preconceito regional em destaque como há tempos não se via. Mas que departamento é esse que tem uma agenda de pesquisa tão ampla? E que poder tem esse diretor da Eletrobras para acabar com as pesquisas na UFPE? Ele cooptou a pesquisadora gaúcha, por meio de um contrato para trabalhar no metrô de São Paulo, ainda longe de ser privatizado. A Eletrobras, que sempre cuidou prioritariamente de usinas hidrelétricas, financiava essas pesquisas? Não precisa ser especialista do CNPQ para a história não fechar bem. Deve ser preciosismo meu, de um burocrata aposentado.
- E aquele personagem que liga de Brasília, qual é a importância dele mesmo? Diz que está sendo grampeado, vai para um orelhão no Setor Comercial Sul, avisa que o bonzinho corre perigo e some? (Vou ter de ver o filme novamente, de preferência podendo parar e voltar para entender direito.)
- E por que mesmo o malvadão paulista e capitalista contrata matadores? Que ameaça representava o professor pesquisador? Era porque ele tinha patenteado o invento da bateria a lítio para carro elétrico? Era pura maldade contra nordestinos, tipo a dos malvadões gringos em Bacurau?
- Fátima, a personagem que é mulher do protagonista foi morta ou morreu de morte morrida? Será que o malvadão paulista teria mandado matar só porque a mulher o ofendeu no jantar? Aliás, as cenas do jantar e da reunião no dia seguinte na universidade são antológicas. A fala de Fátima em resposta às ofensas machistas, racistas e xenofóbicas do malvadão é uma maravilha. Assim como a tiazinha que cuidava do refúgio, essa pequena fala vale o filme.
- Finalmente, quem era o Agente Secreto e a quem servia?
É interessante que o filme encanta mesmo sem fechar as diversas pontas levantadas. Talvez até por isso mesmo, ou seja, levanta tantos pontos que fica impossível transformar em uma narrativa meio linear. Se visse o filme em 1977, provavelmente iria para um bar da Esquina Maldita e ficar tentando entender o filme até o sol raiar. Ou até a Nega Lu subir no balcão do Copa 70 e cantar um blues. De qualquer forma, tomara que ganhe um Oscar. É um belo filme sobre memória e apagamentos, e que toca em questões de preconceito regional de maneira corajosa.