Esta reportagem integra a newsletter Climática, produzida pela Matinal com apoio do Instituto Serrapilheira.
Em junho de 2010, ao longo de poucos dias, choveu três vezes mais que o esperado para o mês em Alagoas e Pernambuco. As chuvas torrenciais provocaram enchentes e atingiram 90 municípios, deixando 150 mil pessoas desabrigadas e 57 mortos. Cinco anos depois, a vida ainda não havia voltado ao normal, especialmente entre as gestantes.Uma pesquisa liderada por pesquisadores brasileiros mostrou que, anos após as cheias, os cuidados pré-natais no Sistema Único de Saúde (SUS) não haviam retornado aos níveis registrados antes do evento extremo na cidade de Palmares (PE), uma das mais afetadas pelo desastre climático. Este é um dos impactos identificados por um dos estudos do projeto Reach, liderado pela Universidade de Londres, dedicado a investigar o uso de sistemas de saúde para o cuidado materno-infantil. Ondas de calor também deixam suas marcas, que incluem complicações no parto, nascimentos prematuros, bebês abaixo do peso e perdas gestacionais.
Dados preliminares da pesquisa que investigou os efeitos das enchentes têm como base mais de 90 mil nascimentos registrados em Palmares (PE), entre 2000 e 2019. A análise, que identifica tendências dos dez anos anteriores e da década posterior às chuvas, integra a pesquisa de doutorado do economista Ivan Augusto Cecilio e Silva no Programa de Pós-Graduação em Economia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
“Minha interpretação é de que há um impacto de longo prazo após o evento extremo. Na situação específica de Palmares, são cerca de três a cinco anos com piora dos indicadores de pré-natal. Depois desse período, começa a reverter, mas é uma recuperação lenta”, explica Silva, coautor de artigo sobre o tema ao lado de Giacomo Balbinotto Neto (UFRGS), Cassia Favoretto (UEM), Leticia Russo (UEM), Everton Silva (UnB) e Josephine Borghi (LSHTM e IIASA), integrantes do projeto Reach.
“O pré-natal é essencial para prevenir complicações e salvar vidas. Quando o acesso é prejudicado, seja por alagamentos, hospitais fechados ou falta de recursos, aumentam os riscos de complicações e mortes evitáveis, tanto para as mães quanto para os bebês”, completa Silva. O Ministério da Saúde e a Organização Mundial da Saúde recomendam um mínimo de seis consultas pré-natais ao longo da gestação.
A pesquisa divide os cuidados pré-natais por nascidos vivos em quatro faixas, que vão de zero a sete ou mais consultas. Os dados apontam aumento no número de nascimentos sem nenhum contato com o sistema de saúde nos primeiros anos pós-enchente. Curva semelhante pode ser observada na faixa de uma a três consultas. Os resultados servem de alerta ao Rio Grande do Sul, que viveu sua pior catástrofe por inundação há pouco mais de um ano.
“No nível mais alto de utilização, não há um impacto claro. Mas, nos níveis baixos, há um número maior de gestantes que fazem as consultas com menos frequência. O impacto se dá até cinco anos após a enchente. Depois disso, vai se regularizando e aumentando o nível que queremos que aumente, de sete ou mais consultas pré-natais”, afirma Silva, pesquisador na área de economia da saúde.
“Estamos tentando definir uma metodologia para analisar esse tipo de evento extremo e aplicá-lo em cenários de outras enchentes no país. Queremos entender se esse efeito se repete ou há diferenças conforme o contexto”, diz Silva. Segundo ele, o estudo das relações entre eventos extremos e cuidado pré-natal é pioneiro no mundo devido à possibilidade de acessar uma base ampla de dados como a fornecida pelo SUS, que não costuma ser encontrada em outros países.
Silva ressalta que pesquisas desse tipo ajudam a compreender como os desastres climáticos prejudicam o acesso ao cuidado materno-infantil. Em outro estudo – uma revisão bibliográfica dos principais impactos de inundações e ondas de calor –, ele e outros pesquisadores listam o que está por trás dessa queda na procura por cuidados de saúde: restrições de deslocamento, desalojamentos, migrações, perdas financeiras e o agravamento de diagnósticos pré-existentes, além de impactos nos recursos materiais e humanos do sistema de saúde.
Médica de família e comunidade, Mayara Floss descreve os impactos da falta dessas consultas. “Se uma gestante não conseguir acessar esse serviço devido a uma enchente, ela certamente perderá a oportunidade de evitar desfechos ruins da gestação, como perda gestacional, parto prematuro, baixo peso ao nascer e restrição de crescimento intrauterino, especialmente quando a exposição ocorre no início da gestação ou em populações vulneráveis”, afirma Floss, que atua no SUS em Florianópolis.
Os efeitos dos eventos extremos no acesso aos serviços de saúde diferem conforme os níveis de vulnerabilidade social, revelando as injustiças da emergência do clima. “Temos uma sobreposição de fatores socioeconômicos e ambientais. Pessoas que gestam, especialmente negras e indígenas, são desproporcionalmente afetadas pelas mudanças climáticas”, observa a médica, que é coautora de recomendações da iniciativa Lancet Countdown sobre impactos das mudanças climáticas na saúde.
As consequências a longo prazo de eventos extremos na saúde, explica a pesquisadora, incluem aumento da mortalidade e morbidade por doenças crônicas e infecciosas, insegurança alimentar e hídrica, impactos negativos no desenvolvimento infantil e agravamento de transtornos mentais, um dos principais aspectos a serem observados no cuidado das gestantes, conforme a cartilha Proteção e promoção da saúde materno-infantil em situação de calamidade, produzida pela UFRGS em parceria com outras universidades.
“A gestação, por si só, representa um período de intensas adaptações psicológicas, sociais e físicas”, ressalta a publicação, desenvolvida durante as enchentes de abril e maio de 2024 no Rio Grande do Sul. “É fundamental oferecer uma atenção especial a essa população, para proteger e promover a saúde materno-infantil e evitar mortes.”
Calor excessivo também prejudica gestantes

O aumento de dias tórridos também afeta as grávidas de maneira desproporcional, segundo pesquisa da organização Climate Central. Quase um terço dos países analisados enfrentou recentemente um mês a mais de calor perigoso para a gestação, devido a efeitos negativos como desidratação e aumento da pressão arterial, que podem levar a partos prematuros, entre outras complicações.
No Brasil, conforme o estudo, foram 27 dias a mais de calor perigoso para as gestantes, entre 2020 e 2024. O quadro se agrava em capitais mais quentes, como São Luís do Maranhão, por exemplo, que lidera o ranking com 50 dias extras de temperaturas escaldantes.
Ainda no contexto nacional, outro estudo, da Universidade de Lancaster e da Fundação Oswaldo Cruz, indica maior probabilidade de partos prematuros entre gestantes de comunidades ribeirinhas expostas a secas ou enchentes durante a gravidez. Há também risco maior para o nascimento de bebês abaixo do peso ideal não só devido a eventos extremos, mas também por conta de chuvas intensas durante a gestação. A situação se agrava conforme o contexto socioeconômico, aponta a pesquisa, que comparou níveis de chuva, durações de gravidez e o peso de cerca de 300 mil bebês, nascidos entre 2006 e 2017, na Amazônia brasileira.
Achados semelhantes foram encontrados em 33 países em desenvolvimento. Publicado na revista Nature, um estudo mostra que o impacto das mudanças climáticas se eleva para mulheres dependentes de água de superfície e com menor renda e níveis educacionais. Foi observada uma tendência crescente de perdas gestacionais relacionadas à exposição a inundações entre 2010 e 2020.
“Essas percepções deveriam incentivar a comunidade global a priorizar e implementar intervenções efetivas, mitigando os impactos adversos de eventos climáticos extremos na saúde materna e infantil, particularmente diante das mudanças climáticas”, concluem os pesquisadores.