Lançado há uma semana e já com as inscrições encerradas, o edital para habilitação de professores ao cargo de diretores e vices das escolas municipais, que substitui a eleição direta, surpreendeu professores e especialistas em educação.
Parte do Projeto de Lei (PL) 27/2025, enviado pela prefeitura à Câmara em maio, que regulamenta o processo seletivo para diretores e vices de escolas, o edital era esperado em até 180 dias após a aprovação do PL. Mas foi publicado antes mesmo de o PL ir à votação.
As inscrições duraram menos de uma semana, de terça-feira (11) a domingo (16). “Se o PL for alterado e isso comprometer pontos do edital, o edital terá de ser revogado”, disse Juliana Massena, pós-doutoranda na Faculdade de Educação (Faced) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
A nova seleção prevê uma série de etapas – entre elas prova objetiva, avaliação comportamental, entrevista individual, análise de títulos e curso de qualificação – e substitui as eleições diretas para a direção das escolas municipais. Em janeiro, a Justiça gaúcha atendeu a um pedido do governo Melo de pôr fim às eleições diretas. A prefeitura alegou que, como estavam, as eleições contrariavam “o princípio democrático, por supressão do poder do prefeito”.
Perguntamos à Smed sobre as medidas que serão tomadas caso o PL seja aprovado com alterações. Questionamos também quanto às dúvidas apresentadas pelos entrevistados em relação aos critérios da avaliação comportamental e da entrevista individual, bem como sobre o prazo de validade do processo seletivo.
Solicitamos ainda explicações sobre como a Smed pretende assegurar a participação da comunidade escolar no processo. Não tivemos resposta até a publicação desta reportagem. O espaço segue aberto.
Edital prevê prova, avaliação comportamental e curso
Exceto a análise de títulos, somente classificatória, todas as demais etapas do edital para diretor e vice são eliminatórias. Quem passar nas etapas de prova objetiva, avaliação comportamental, entrevista individual e análise de títulos pode fazer um curso para gestores. Ao final, há mais uma prova, que compõe a nota da etapa, junto à da frequência.
Os candidatos aprovados farão parte do “Banco de Gestores da Rede Municipal de Educação” e poderão ser alocados em escolas diferentes das que lecionam. O processo é conduzido pelo Instituto Legalle, contratado via dispensa de licitação.
O edital não prevê participação da comunidade escolar na escolha dos diretores e vices. Mas o projeto de lei (PL) 27/2025, enviado pela prefeitura à Câmara, propõe que os diretores, já definidos, apresentem um plano de gestão escolar à comunidade e à Secretaria Municipal de Educação (Smed), que poderá aprovar ou não o plano. É a única parte em que a ‘comunidade escolar’ aparece no processo. Mas a regra do plano de gestão, no entanto, não aparece no edital.
Especialistas afirmam que o “plano de gestão” não deve ser apenas apresentado à comunidade, mas construído de forma coletiva. “Não está previsto em nenhum momento no ordenamento constitucional e legal da educação brasileira. O que temos é a previsão de um projeto político-pedagógico, que não pertence a um diretor ou diretora, mas é da comunidade escolar”, explica Juliana Massena.
As vereadoras Juliana de Souza e Natasha Ferreira, ambas do PT, propuseram sete emendas ao PL, com objetivo de incluir uma arguição com o Conselho Escolar durante a habilitação; propor a consulta escolar por voto direto para definir uma lista tríplice entre os candidatos habilitados; determinar a duração de quatro anos para o mandato; e garantir que os diretores atuais permaneçam na função até o fim do exercício.
“Não somos contra a ideia do processo de seleção, de qualificação, desde que ele assegure a participação da comunidade escolar por meio de eleição direta. No PL da prefeitura, a apresentação de um plano de gestão depois que o diretor já está indicado é faz de conta.. Porque, no edital, isso sequer está previsto”, aponta a vereadora Juliana de Souza.
Participação comunitária fica de fora de edital
A prefeitura utilizou duas estratégias e uma meta do Plano Nacional de Educação (PNE) para basear o edital para habilitação de professores para cargos de direção. Mas especialistas alertam que as estratégias usadas não foram devidamente contempladas e/ou detalhadas. “O edital foi construído sem cuidado com a normativa, porque não há participação da comunidade. A meta 19 é nítida em assegurar condições para efetivação da gestão democrática, associando critérios técnicos de mérito à consulta pública à comunidade”, aponta. “A estratégia 19.2 (que trata de assegurar condições para que os conselhos escolares executem suas avaliações) sequer tem a ver com essa temática”, conclui.
Segundo a justificativa do PL apresentado por Melo, o novo modelo para gestão das escolas se alinha à emenda constitucional do Novo Fundeb, que criou condições para repassar recursos do Valor Aluno-Ano por Resultados (VAAR), uma nova complementação de recursos.
A redação da emenda do Fundeb, segundo Juliana Messena, reforça um movimento já forte entre os municípios de abrir mão das eleições para equipes diretivas em favor de processos centralizados no ente público. “A condição para receber esse aditivo do Fundeb fala que a rede pode escolher entre manter a consulta com a comunidade ou adotar processos de seleção”, explica. Antes, o PNE definia era uma combinação da consulta à comunidade aliada a processos de seleção por mérito e critérios técnicos.
Além da apresentação do plano de gestão escolar no início do exercício, o PL 27/2025 prevê também avaliações contínuas do desempenho do diretor, “assegurando mecanismos periódicos de consulta à comunidade escolar”. Mas não há clareza sobre quais mecanismos serão implementados.
Critérios subjetivos
Outra questão que trouxe dúvida a professores e especialistas é a avaliação comportamental. O edital cita: “as competências a serem analisadas na Avaliação Comportamental incluem, mas não se limitam a [grifo nosso]”. Em seguida, lista as competências: visão estratégica, controle emocional (incluindo controle sobre a agressividade, ansiedade, impulsividade e depressão), liderança, comunicação, sociabilidade, empatia e ética, dentre outras.
Para Isabel Medeiros, diretora da Atempa, o edital abre espaço para eliminações arbitrárias dos candidatos.
“Existem algumas competências listadas que também são subjetivas e dependem do avaliador, mas o sujeito também pode ser desclassificado pelo que não aparece no edital. Posso ter visão estratégica, controle emocional e as outras exigências e, mesmo assim, ser desclassificado”, explica.
Ainda de acordo com o edital, serão utilizados instrumentos psicológicos específicos, embasados em normas e procedimentos validados, de acordo com o Conselho Federal de Psicologia (CFP). Entretanto, não são especificados quais instrumentos servirão de base para a avaliação. Mais detalhes só serão divulgados no edital de convocação para a etapa específica.
Outro ponto polêmico está na etapa de entrevista individual. Também de caráter eliminatório, a entrevista “consiste na análise aprofundada das competências, habilidades, atitudes e da ‘aderência da pessoa candidata às diretrizes, princípios e necessidades da Rede Municipal de Educação”, segundo o texto do edital.
“Essa ‘aderência’ pode ser uma aderência ideológica. Não tem a ver com uma aderência republicana às normas gerais”, diz Medeiros. “É evidente que somos servidores e temos que estar alinhados com as diretrizes. Mas não podemos fechar os olhos para a comunidade. Uma direção comprometida com a comunidade e não só com governos é fator de qualificação da educação pública”, conclui.
Diretores podem não ser alocados nas escolas onde lecionam
Tanto no PL protocolado por Melo quanto no edital publicado, não há previsão de que o diretor habilitado e eventualmente convocado para a função seguirá na escola onde já trabalha. Enquanto a lei de Marchezan exigia tempo de trabalho de seis anos e pelo menos um ano de atividade na escola pretendida, o PL atual define como critério a formação superior na área da educação e atuação de, no mínimo, três anos em escolas.
Caso candidatos suficientes não se inscrevam ou não sejam aprovados no edital, as funções serão designadas pela Smed.
“Algo que chama atenção é que o edital exige três anos de experiência em educação, mas não na rede municipal e nem na escola pela qual vai se habilitar. Não é tudo a mesma coisa, como sugere esse processo centralizado e padronizado”, afirma Juliana Massena, da UFRGS.
Para ela, a gestão democrática e os processos de eleição são essenciais para firmar a legitimidade do gestor dentro de uma comunidade escolar. “Não basta saber de legislação, política educacional. A escola não é uma empresa. Ela opera com o direito público e subjetivo à educação. A legitimidade na comunidade escolar é indispensável para dar conta desse direito fundamental.”
O professor de filosofia e jornalista André Pares, que trabalha há oito anos na rede municipal e já ocupou a função de vice-diretor, aponta que, nesse novo processo, se perdem importantes aprendizados construídos entre a sala de aula e o espaço além dos muros da escola.
“O processo eleitoral para direção é riquíssimo em termos de aprendizagem do contexto escolar. Ele diz respeito ao território, ele diz respeito à ancestralidade, ele diz respeito às relações familiares, de trabalho, de desejos, de sonhos, de constituição de sujeitos cidadãos do mundo”, diz Pares. “Ao desterritorializar, tu desmancha as estratégias de organização desse território, enfraquece as pessoas.”