“Tenho 67 anos e uso essa água desde criança”, desabafou o ex-morador do bairro Auxiliadora Giovanni Colombo. Ao lado de ex-vizinhos, ele – que viveu na região por mais de 50 anos e hoje reside no bairro Petrópolis – mostrou-se indignado com a situação da fonte de água localizada em frente ao número 81 da rua Carlos Trein Filho. A bica, bastante conhecida e frequentada tanto por moradores da região como por forasteiros há anos, secou recentemente. Próximo ao leão esculpido por onde a água saía, foram afixados cartazes bradando: “Urgente!! Cadê a nossa água centenária da comunidade que estava aqui!?”
Por ora não há explicações oficiais para o fim da vazão. Nas redondezas, o que despontou de novo nos últimos tempos foi uma obra da construtora Plaenge, que compreende nove terrenos, ao fundo e ao lado da bica. Consultada pela Matinal, a empresa relatou que apenas retirou as edificações dos terrenos lindeiros à fonte. “Não há a intenção de alterar ou retirar a fonte existente no passeio, em frente ao terreno”, informou.
As intervenções da Plaenge na região começaram há cerca de dois meses. Em questão de três dias, os terrenos em que será construído “um empreendimento residencial vertical” foram totalmente cercados por tapumes. À época, a reportagem havia consultado a empresa sobre o destino da fonte. A resposta havia sido a mesma, de manutenção do local.
Desde então, por alguns momentos, a água chegou a ficar mais fraca, porém voltou a fluir normalmente antes de secar. Em meio às chuvas que caíram em Porto Alegre – só em junho choveu mais que o dobro da média histórica – a situação por si só já seria incomum. Em julho, o volume ficou abaixo do esperado para o mês, mas ainda assim caíram mais de 90mm de água na capital.

Em junho, fonte ainda vertia água, como ocorreu ao longo de décadas | Foto: Tiago Medina
De acordo com especialistas consultados pela Matinal, uma possibilidade para a fonte ter secado é um eventual rebaixamento do aquífero em razão da obra. Desta forma, a água perderia força para chegar até a rua naquele ponto onde a fonte foi instalada. O rebaixamento freático é uma técnica usada para a construção de subsolos. A Plaenge não forneceu detalhes do projeto, não confirmando se haverá ou não subsolo no futuro empreendimento.
Em junho, quando a reportagem teve acesso ao Expediente Único dos terrenos e averiguou que a aprovação do projeto arquitetônico havia sido indeferida junto à Secretaria Municipal de Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade (Smamus), a empresa disse que o projeto foi retirado de tramitação “para ajustes mercadológicos e adequações gerais”. Àquela altura, segundo o grupo, o projeto seguia em desenvolvimento.
De acordo com a proposta do novo plano diretor, a rua Carlos Trein Filho, onde fica a bica, poderá ter prédios de até 60 metros de altura, o que permitiria edificações de 20 andares, maior do que o limite imposto hoje na região. Atualmente não há prédios desta altura no trecho da rua, próximo à avenida Plínio Brasil Milano, onde as mais altas construções são de quatro a cinco pavimentos.
Água não era potável, mas bica seguia frequentada
A bica da Carlos Trein Filho é uma das nove fontes públicas de Porto Alegre monitoradas pela prefeitura de Porto Alegre – ação que ocorre, neste ponto, há mais de 20 anos. Responsável pela fiscalização, a Diretoria de Vigilância em Saúde, ligada à Secretaria Municipal da Saúde, relatou à Matinal que não havia sido comunicada de qualquer alteração no ponto. A fiscalização fez a última análise da qualidade da água em 28 de maio.
Durante a enchente do ano passado, a fonte foi bastante procurada, mesmo não sendo potável. Por dias, enquanto o fornecimento de água estava interrompido em boa parte da cidade, havia filas no local. Moradora do bairro Auxiliadora há 30 anos, a jornalista Gelcira Teles relembrou que as filas durante o período de inundação em Porto Alegre duravam horas. “A fonte sempre foi famosa. A maioria sabia que a água era imprópria para consumo, mas o pessoal fervia”, contou.
Giovanni Colombo, que frequentava a fonte semanalmente, contou que consumia a água com regularidade. Em algumas oportunidades colocava em uma fonte de barro em casa, em outras, sequer fervia.

Durante a enchente de maio de 2024, as filas na fonte duravam horas | Foto: Geovana Benites/Matinal
Em meio à movimentação de caminhões que trabalham no terreno próximo à bica, Teles lamentou: “Fato é que as construtoras estão desfigurando o bairro. Não se trata de querer manter prédios caindo aos pedaços, mas do desrespeito às árvores, ao patrimônio material e imaterial da gente”.
“A fonte é um espaço icônico”
Sem informações a respeito do que houve e do futuro da bica, os moradores da região veem relação entre o fim da vazão da água com a obra da Plaenge. “É um abuso desta construtora”, reclamou Colombo.
Para além da questão da coleta da água, o presidente da Associação dos Moradores e Amigos da Auxiliadora, João Volino reclamou da descaracterização de um ponto importante da região. “A fonte é um espaço icônico e tradicional aos moradores, merece ser tratado com muito mais consideração”, afirmou ele, que considera a eventual decisão de secá-la algo arbitrário. “A comunidade está bastante indignada.”
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