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Prefeitura de Gravataí tenta retirar proteção ambiental de área de 400 hectares que pertence a um clube

Gestão de Luiz Zaffalon justifica mudança dizendo que a Estância Província de São Pedro já está degradada e revela planos urbanísticos contraditórios, que ameaçam a vegetação nativa de Mata Atlântica e Pampa

Prefeitura de Gravataí tenta retirar proteção ambiental de área de 400 hectares que pertence a um clube
Foto: Reprodução / Estância Província de São Pedro

*O título e o texto foram atualizados na sexta-feira (17), às 20h, para inserir a nova decisão da justiça, emitida após a publicação desta reportagem, que anulou os efeitos da votação realizada na quinta-feira (17).

Com 15 votos favoráveis e quatro contrários, vereadores de Gravataí aprovaram na quinta-feira (16) um projeto de emenda que modifica mais de 10 artigos da Lei Orgânica do município de mais de 265 mil habitantes. Dentre eles, está o fim da eleição direta para diretores de escolas municipais, a alteração de regras para o funcionalismo público e a mudança no regime de proteção de uma área ambientalmente estratégica para a Grande Porto Alegre.

A nova lei, encaminhada pela gestão de Luiz Zaffalon (PSD), remove a proteção ambiental legal atribuída à área da Estância Província de São Pedro. A propriedade privada de 400 hectares abriga um clube de campo, situado entre a ERS-118 e a ERS-020, às margens do Morro Itacolumi, que seguirá sendo área de preservação ecológica e paisagística, não tendo sido incluída na lei.

Ainda na última quinta-feira, a vereadora Vitalina Gonçalves (PT) entrou na Justiça pedindo a suspensão da sessão que aprovou o projeto. O presidente da Câmara, Clebes Mendes (PSDB), no entanto, seguiu normalmente com a agenda, argumentando que a interrupção poderia ter efeito apenas se houvesse a comunicação direta da decisão por um oficial da justiça.

Nesta sexta-feira (17), Vitalina voltou a recorrer ao Judiciário, que em novo despacho proferido no mesmo dia reconhece o descumprimento da primeira ordem, e determina a suspensão imediata da votação, proibindo a publicação do processo em diário oficial, além de notificar o Ministério Público gaúcho sobre os fatos.

Na segunda-feira, uma audiência pública convocada por Gonçalves e o vereador Claudecir Lemes (MDB) reuniu mais de 300 pessoas, entre ambientalistas e servidores públicos, que protestaram contra a alteração da Lei Orgânica.

Parecer da prefeitura revela interesses econômicos na estância

Um parecer emitido pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano (Smdur), que embasou as alterações do projeto, considera a área da Estância Província de São Pedro como um “expressivo vazio urbano”. Segundo o documento, emitido na terça-feira (13), antes da primeira votação, o termo corresponde a um espaço “não construído ou subutilizado”, com “potencial para a requalificação das cidades”.

No entanto, o próprio município reconhece que a estância está às margens de importantes cursos d’água, abriga cobertura vegetal de interesse ecológico, com remanescentes da flora do Pampa e da Mata Atlântica.

Conforme a prefeitura, o que justifica a alteração na proteção ambiental do local são as condições precárias de preservação da propriedade, cuja função de fiscalização cabe, na verdade, à gestão municipal. O parecer argumenta que a área está degradada, logo não precisaria mais da proteção atual.

A gestão Zaffalon anexou uma imagem aérea da propriedade apontando poluição dos recursos hídricos, plantação de soja, pinus e eucalipto, descarte incorreto de lixo e esgoto e a presença de invasões nos limites do clube de campo. Diante disso, o relatório informa que as secretarias já dispõem de autorização para a derrubada de 128.535 árvores exóticas espalhadas por 135 hectares, processo que também demanda a eliminação de um sub-bosque com 16.680 espécimes nativos.

Imagem de satélite dá a dimensão do tamanho da área verde onde a estância está localizada em Gravataí. Imagem: Google Earth

O documento impõe também nova tributação aos proprietários: em vez do Imposto Territorial Rural (ITR), a estância deve pagar o imposto urbano, o IPTU, que é mais caro, gerando uma cobrança de 9,3 milhões de reais anuais.

Presente na audiência pública que debateu o projeto nesta terça-feira, o vereador de Cachoeirinha Leonardo da Costa (PT) vê a intenção do município vizinho com desconfiança a intenção da prefeitura sobre o terreno. Na audiência, ele citou dados do MapBiomas, indicando que nos últimos quatro anos foram desmatados 2.800 hectares de vegetação nativa em Gravataí e diz ter acionado o Ministério Público gaúcho, demandando um estudo de impacto sobre o projeto recém-aprovado.

Uma das responsáveis por convocar a audiência pública um dia antes da primeira votação, a vereadora petista Vitalina Gonçalves compartilha das preocupações do parlamentar do município vizinho. “Os hectares da Província São Pedro funcionam como uma esponja. A especulação imobiliária pode se apropriar da área e alagamentos, enchentes e alterações climáticas, no sentido do aumento do calor, podem se intensificar”. Vitalina reitera que a defesa pela continuidade da preservação dos hectares do clube não se opõe ao necessário desenvolvimento da cidade, que deve buscar expansão longe dali.

Apesar de estar em uma área protegida, a São Pedro é vizinha a um condomínio de luxo. “É evidente a (intenção da) retirada da proteção ambiental para colocar a estância em uma situação financeira difícil, fragilizando até que, inevitavelmente, acabem vendendo a área”, observa a parlamentar. Para ela, o governo municipal tenta impor à população uma narrativa que induz ao erro. Se de fato os membros da estância fossem um grupo de privilegiados ganhando dinheiro em cima de um espaço preservado, como indicam, o correto seria intensificar cada vez mais a proteção, não retirá-la. Vitalina considera os argumentos da prefeitura difíceis de entender. “Eles querem vender essa narrativa, colocando a comunidade contra os sócios da propriedade privada”, afirma.

Advogada e uma das sócias do clube de campo, Isadora Dias da Silva confirma que a estância já paga os impostos como propriedade rural e o aumento na tributação pode mesmo levar à venda para imobiliárias.

Há dois anos, lembra a advogada, integrantes da São Pedro conversaram com o prefeito Luiz Zaffalon buscando soluções para as ocupações irregulares nas bordas da propriedade, mas a tentativa não surtiu efeito. A estância pretende doar parte do terreno às famílias, algumas das quais estão no local há cerca de 40 anos. “Íamos colocar um cercado e a prefeitura, então, ia fazer a regularização desses imóveis, mas depois o prefeito falou que não era com eles”, diz.

A resposta negativa de Zaffalon ocorreu por não concordar com parte do tratado, informa a prefeitura. À época, a proposta envolvia que a gestão arcasse com os custos do cercamento da área.

Em relação ao descarte incorreto de esgoto, Isadora da Silva conta que a poluição é oriunda de um bairro próximo, que não faz manejo correto dos resíduos. “Nunca conseguimos fazer com que a prefeitura colocasse esgoto, é fossa ainda. Vem de outro bairro e desaguou em uma de nossas nascentes”, diz Silva. A Corsan e a prefeitura já foram chamadas para resolver o problema, que voltou a se repetir. “Arrumaram daquele jeito, mas continua desaguando”, afirma.

Estância deve processar município

Vice-presidente do clube e sócio há mais de 30 anos, Ênio Nascimento esclarece que a propriedade com 200 membros contempla criação de gado, uma plantação de soja de cerca de 40 hectares, além dos pinus usados para gerar renda interna, auxiliando na gestão econômica do espaço, uma vez que “a arrecadação de mensalidades não paga a folha”. Quanto aos eucaliptos, Nascimento os percebe como “uma praga que precisa ser erradicada até por força da lei”, porém o clube precisa de licença para realizar a derrubada.

Essas atividades, explica o vice-presidente, são necessárias para manter o status rural da estância, correspondente à cobrança do ITR. Das atividades realizadas, nenhuma envolveu o corte de árvores nativas, conforme outra integrante do conselho diretor da estância.

A depender das novas atualizações sobre a emenda que altera a classificação ambiental do local, os gestores da propriedade afirmam que irão processar a prefeitura.

Questionada pela Matinal a respeito de possíveis degradações ambientais com os planos de abrir a área a novos empreendimentos – como a implementação de novas estradas e um parque para uso da comunidade –, a prefeitura de Gravataí afirma que “outros usos com maior valor agregado terão condições de custear a restauração e a preservação” do local. “Questões de mobilidade e soluções viárias são necessárias à sociedade e à promoção do direito difuso e convivem plenamente com a necessária preservação ambiental”, alegam.


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João Neto

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