A violência contra a mulher é uma velha história, tão antiga quanto a humanidade, mas não pode mais ser tolerada. O título de um livro coletivo, num brique dominical de Montpellier, sob os arcos do aqueduto São Clemente, obra monumental do século XVIII, me faz pensar um pouco sobre o assunto: Homem, esse animal de sorriso tão doce.
O título remetia à espécie humana, não ao masculino, mas é sabido que mais letal tem o sido o macho humano, um predador impiedoso. Uma campanha em Montpellier denuncia a violência masculina com sapatos femininos colados nas paredes dos prédios de ruas de grande movimento de pedestres. “O amor não mata, homens violentos, sim”, diz o slogan dessa impactante interpelação aos passantes.
A ONG “Tricoteiras histéricas” é responsável por essa campanha contra o feminícidio. Até agora, em 2025, 62 mulheres foram mortas por seus maridos ou ex-maridos em Montpellier. O machismo é devastador.

Ao longo dos séculos mesmo gênios da arte ou da ciência usaram e abusaram das mulheres. Charles Dickens, o escritor que mais denunciou a violência contra os miseráveis do século XIX, teve dez filhos com Catherine Hoggart. Dickens tentou interná-la num hospital psiquiátrico quando perdeu o interesse físico por ela, acusando-a de ser desleixada com a aparência. Ele a traía, mas negava. A separação pesou mais sobre ela, que sofreu com o julgamento de familiares e conhecidos.
Alguns historiadores garantem que Mileva, primeira esposa de Albert Einstein, foi colaboradora do marido em artigos científicos e responsável por cálculos essenciais para as suas descobertas.
O casamento acabou em divórcio conturbado. Ela jamais ganhou créditos pelo que fez ou pode ter feito e só teve uma compensação: ficar com o dinheiro do Nobel de Einstein para a criação dos filhos. No Instituto Politécnico de Zurique ela chegava a tirar notas mais altas do que ele. O casamento tornou-a invisível. Vivia para o esposo poder se destacar. O machismo não sabia lidar com mulheres brilhantes.
O escritor norte-americano Ernest Hemingway casou-se quatro vezes, com Hadley, Pauline, Martha e Mary. Pauline Pfeiffer aproximou-se como amiga de Hadley. Casou-se com Ernest. Fez tudo por ele. Deu as condições materiais, inclusive casa, para ele produzir suas obras.
Perdeu o lugar para outra nova amiga, Martha Guellhorn. Hemingway teria ciúmes do trabalho dela. Martha chegou antes dele na Normandia para a cobertura dos grandes fatos do fim da Segunda Guerra Mundial. Em Paris, no Ritz, ele receberia a visita de outra jornalista, Mary Welsh, com quem amarraria o seu último casamento.
Uma das histórias mais conhecidas é a de Francis Scott Fitzgerald e Zelda. Ele a sugou, humilhou e inviabilizou.
A bela e brilhante Zelda acabou internada em hospital psiquiátrico. O marido não suportava a ideia de que ela pudesse ser tão boa ou melhor do que ele. Zelda foi apagada pelo homem que amava.
Esses homens não mataram as suas mulheres. Eles as usaram, dispensaram, ofenderam, submeteram aos seus fins e aos seus meios.
Se eram gênios à frente do tempo em que viveram quanto ao que faziam, eram como qualquer medíocre em relação aos costumes vigentes.
O animal de sorriso tão doce pode exibir um esgar.
