Se eu pedir para você citar autores ou autoras trans, e se você for uma pessoa bem ligada na cena da literatura contemporânea, é possível que consiga citar algumas autoras travestis. E se eu pedir para você incluir algum autor transmasculino, é possível que se lembre de um ou dois – talvez gringos, possivelmente de não ficção – ou pior: talvez a resposta seja o silêncio.
Isso não significa que pessoas trans não estejam escrevendo ficção. Talvez signifique que elas estão publicando pouco, sim. E isso se deve a muitas razões combinadas. Mas noto que mesmo as pessoas trans que publicam são pouco faladas, pouco lidas, às vezes circulam em tiragens limitadas, edições independentes com distribuição restrita e fazem sua trajetória de forma artesanal, por fora da indústria. E mesmo os poucos que a indústria absorve acabam entrando pelo frágil critério da representatividade. Afinal, toda grande editora que se preze tem autores de identidades subalternizadas para chamarem de seus.
O fato é que não há um movimento consistente de inclusão, que ofereça (no mínimo) um tratamento editorial robusto para garantir a permanência da obra em catálogo e a continuidade da carreira do autor ou da autora. Há raras exceções, como a argentina Camila Sosa Villada, cuja obra ganhou um belo tratamento editorial no Brasil, mas no geral os livros de autores e autoras trans acabam esquecidos – sobretudo os de autores e autoras que já morreram.
Evidente que, quando falo de inclusão, isso abarca muitas variáveis de acesso, combate a violências, educação, saúde, bem estar etc que são questões de Estado e transcendem as possibilidades de atuação do mercado. Mas é isso: parece que falta tudo.
E é por isso também o meu entusiasmo com o que vou contar a seguir.
Dia desses, zapeando pelo catálogo da Supersonica, uma editora de audiolivros, me deparei com uma nova edição de A queda para o alto de Anderson Herzer, uma espécie de diário ou autobiografia de um garoto trans, que passou boa parte da vida como interno da FEBEM durante a ditadura militar brasileira. O livro passou anos esgotado, aparecendo apenas em referências bibliográficas de pesquisas sobre literatura LGBT ou em pdfs feitos a partir de xerox de má qualidade compartilhados em grupos de pesquisa acadêmica. Acho que por isso fui adiando a leitura. Encontrar a obra reeditada, ainda mais em formato de audiolivro, que amplia ainda mais as possibilidades de acesso, foi uma grata surpresa.
A queda para o alto narra em detalhes os absurdos do sistema prisional para menores, as violências imputadas à internas (à época, Herzer foi detido na FEBEM para meninas) pelo Estado e também a violência de gênero de uma sociedade doente, que segue vitimando mulheres e pessoas trans em espaços de privação de liberdade até hoje. O livro contém passagens fortes e inúmeros gatilhos, por isso recomendo cautela aos leitores e leitoras mais sensíveis.
A narração é de Shi Menegat, pessoa trans não binária, atriz, produtora e pesquisadora. E talvez caiba aqui uma ponderação: fiquei pensando se não seria mais adequado que uma voz transmasculina narrasse o livro. Não se trata de uma crítica ao trabalho de Shi, responsável por dar vida a um livro comovente com uma interpretação forte e emocionada. Meu comentário é mais no sentido da necessidade de reparação de um apagamento histórico. Se as autorias trans em geral já são subalternizadas no meio literário, a narração de um audiolivro por uma voz transmasculina, até o momento, é inédita.
Em uma rápida pesquisa no aplicativo de audiolivros, constatei que os títulos de Camila Sosa Villada publicados em português são todos narrados por travestis. Na primeira versão de seu romance mais famoso, batizada como O parque das irmãs magníficas, a voz é da gaúcha Valeria Barcellos. A nova edição, intitulada As malditas, e o livro de contos Sou uma tola por te querer são narrados por Andrea Rosa Sá. Rainhas da noite e Ricardo e Vânia, ambos livros sobre pessoas trans escritos por Chico Felitti, são narrados por Renata Carvalho.
As atrizes Valeria, Andrea e Renata são travestis e deram voz às histórias de autoras e personagens travestis. Nada mais justo que o mesmo rigor de representatividade e lugar de fala acontecesse com uma história escrita por um garoto trans.
O apagamento das identidades transmasculinas nas artes e na mídia é histórico: o livro A queda para o alto foi adaptado para o cinema em 1986 com a atriz Ana Beatriz Nogueira no papel principal. Pois é. O debate sobre transfake – quando um personagem trans é interpretado por uma pessoa cis na dramaturgia – é bem recente. Mas o pior é o título do filme: Vera, em referência ao nome de batismo (ou “nome morto”) do autor.
Dito isso, reitero o convite para que conheçam a história de Anderson Herzer. Depois de ouvir o audiolivro, vi que o livro convencional voltou a circular no formato impresso/físico pela Editora Vozes, a mesma que publicou a primeira edição em 1982 e que deteve os direitos de publicação por todo esse tempo até a nova edição da Supersonica em 2025.
Por fim, faltou contar como foi que Herzer passou de interno da FEBEM para autor publicado pela prestigiosa Editora Vozes. É o próprio autor quem dá detalhes desse plot twist nos últimos capítulos do livro. E antes que me xinguem pelo spoiler, isso também tá na Wikipedia.
Os poemas e textos autobiográficos chegaram ao conhecimento da diretoria da instituição. E numa visita de rotina à FEBEM, o então deputado estadual Eduardo Suplicy teve acesso a esse material e se emocionou com o que leu. Além disso, ele viu potencial para publicação. Faltava pouco para Herzer deixar a FEBEM, quando completasse 18 anos. O deputado então o convidou para trabalhar em seu gabinete e começou a articular a publicação do livro. Anderson deixou a instituição e começou a trabalhar na Assembleia Legislativa de São Paulo, mas se suicidou em 1982, antes de ver seu livro publicado.