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Os espaços de aprendizagem como lugares de construção do ser

Parêntese #301

Os espaços de aprendizagem, a partir da teoria da aprendizagem experiencial, não são ambientes físicos, mas territórios dinâmicos e relacionais onde as experiências do aprendiz são transformadas em conhecimento. Nesse cenário, “a aprendizagem não se constitui como um processo universal, mas como um mapa de territórios de aprendizagem, um quadro de referência dentro do qual muitas formas diferentes de aprendizagem podem florescer e se inter-relacionar.” 

Alguns dias atrás, em uma conversa com a Alice Kolb, refletíamos sobre sua instigante concepção de espaços de aprendizagem: um espaço que não é apenas físico, que não se limita a uma única possibilidade, mas que se constitui na interação com o outro e na compreensão desse ambiente como um lugar.

A partir dessa perspectiva, torna-se quase impossível pensar a sala de aula, o campus, ou mesmo os espaços abertos e complementares de aprendizagem sem recorrer a uma visão antropológica. 

Diferentes conceitos nos ajudam a avançar na concepção do que chamamos de ambientes facilitadores de aprendizagem: contextos que favorecem o ensinar e o aprender por meio da articulação de condições facilitadoras como currículo, princípios metodológicos, tecnologia, espaços físicos e virtuais, promovendo o encontro entre educadores e estudantes. 

E, por falar em encontro, eis que nos encontramos, Gustavo e Isa, no café dia desses. Trilhamos espaços diferentes, mas, por vezes, nossas caminhadas se cruzam. Quando isso acontece, a conexão, o afeto e o sonho comum nos levam a conversas instigantes. É nesse entrelaçar de percursos, sempre marcados pela busca por desenvolvimento pessoal e por sermos professores melhores, comprometidos com a educação, que reconhecemos: vivenciamos nesses encontros verdadeiros ambientes facilitadores da aprendizagem. Espaços de diálogo e movimento que nos desacomodam, mas, ao mesmo tempo, também nos impulsionam e transformam. 

Vivenciamos um espaço que nos afeta e nos move a construir um processo de trocas. Um espaço que se constitui em correspondência. Como propõe Tim Ingold, corresponder ao mundo não significa descrevê-lo ou representá-lo, “mas sim responder a ele”. Para tanto, é preciso deixar-se afetar por este espaço e construir um processo de trocas que nos transformam. Nesse movimento, agimos, impactamos e somos impactados pela experiência e reflexão, tal como no ciclo de aprendizagem descrito por Alice e David Kolb.

No ensino superior, os desafios impostos pelas diferenças geracionais, pela compreensão sobre o valor da universidade atualmente e pelo impacto das tecnologias, acabam nos trazendo a necessidade de pensarmos em como articular este espaço para a efetiva construção de conhecimento, mas também de uma identidade. 

Ainda em uma visão antropológica, que considera o espaço para além de sua dimensão física, trazemos para contribuir com nossa reflexão a ideia de lugar, proposta por Marc Augé. O lugar é o espaço onde construímos identidades, gerando pertencimento e delineando singularidade a quem o habita, onde se inscreve a história, carregada de memória e continuidade no tempo, e onde se desenvolvem vínculos sociais, relações afetivas que nos conectam. A sala de aula pode, sim, ser esse lugar. No entanto, quando não abrimos espaço para encontros significativos entre educadores e estudantes e não damos protagonismo e voz aos alunos, corremos o risco de reduzi-la a um conceito fabril ou bancário. Assim, a sala de aula aproxima-se do que o autor denomina não lugar: espaços que não geram identidade, favorecem o anonimato e se tornam transitórios e impessoais.

Para avançar, precisamos reconhecer os desafios e, a partir deles, criar espaços de conversa e de crescimento coletivo. Nesse sentido, a ideia de um mapa de territórios de aprendizagem nos indica um caminho. Se imaginarmos esse conceito, conseguimos ver múltiplas dimensões, sobreposições, cruzamentos, uma teia de relações através das quais podemos reconhecer o nosso lugar, o espaço onde podemos aprender. Esse mapa não é único nem fechado, é pluriversal, pois considera a autonomia e a realidade de cada aluno, ao mesmo tempo que amplia as possibilidades do coletivo e fortalece o pertencimento.

Seguindo nosso percurso de estudos com vistas a um minucioso desenho desse espaço de aprendizagem como lugar de construção do ser, trazemos para colaborar com a discussão o historiador Luiz Antonio Simas, autor que propõe a descrição do espaço a partir da articulação de duas dimensões: o território e o terreiro

Para Simas, o território é um espaço funcional, planejado dentro de uma lógica urbana e política. Transposto para o contexto de sala de aula, esse conceito pode ser compreendido como o conjunto de elementos que podem nos ajudar na construção de um processo visando a nossa proposta de ensino e aprendizagem para os alunos, entre eles, a escola enquanto instituição, seu currículo, suas normas, sua estrutura física de salas, laboratórios, pátio. São, sem dúvida, elementos fundamentais, mas não suficientes. Ao construirmos o protagonismo do estudante e reconhecermos seus olhares, bem como os diferentes pluriversos que habitam, torna-se necessário ampliar o próprio conceito de território.

Surge, então, a necessidade de uma transformação, uma transgressão. Na visão do autor, essa transgressão está conectada à proposta de transformar o território em terreiro: um "espaço praticado na dimensão do encantamento do ser no mundo". Sim, a construção de espaços de aprendizagem pensados para serem vividos, carregados de sentidos, ritos e afetos e também sua memória, que preconizem o desenvolvimento integral da pessoa, é fundamental para a geração de pertencimento e bem-estar. Talvez um dos elementos que nos ajude nesse processo é a possibilidade proposta por Simas de “terreirizar” os territórios. Terreirizar a sala de aula.

Por outro lado, é preciso reconhecer que as diferenças impostas por realidades distintas muitas vezes nos afastam de um caminho tranquilo e suave nessa construção. Desse modo, o desafio de criar espaços que resistam ao anonimato e cultivem identidade, memória e relação permanece.

Professores e estudantes, em sua maioria, pertencem a gerações diferentes, possuem compreensões de mundo distintas e, muitas vezes, até mesmo a linguagem pode ser uma barreira. Para nos auxiliar na reflexão sobre as sutilezas da linguagem na interação entre diferentes indivíduos, tomamos emprestado aqui o conceito de excesso, proposto pela antropóloga Marisol de La Cadena. A partir de anos de interação com Mariano e Nazario Turpo, dois indígenas Quechua, no Peru, a autora mostra que suas conversas eram repletas de conceitos que os três entendiam, e conceitos que excediam sua compreensão por estarem além das práticas onto-epistêmicas relacionadas a seus mundos. Reconhecer os excessos permite que nos coloquemos em uma posição de não saber, e isso nos leva à busca da compreensão do outro. Sem essa percepção, arriscamos ignorar, julgar, classificar a diferença, reduzindo a perspectiva do outro aos limites do nosso próprio olhar.

Essa noção de excesso dialoga com o conceito de excedente de visão, elaborado por Mikhail Bakhtin, filósofo e teórico da linguagem e da literatura. Para ele, o excedente corresponde àquilo que o outro pode ver e dizer e que eu não alcanço sozinho. Reconhecê-lo significa aceitar que não dominamos totalmente o sentido e que compreender o outro exige assumir uma posição de abertura. Sem essa postura, destaca o autor, reduzimos o outro ao nosso olhar. O autor destaca que cada enunciador tem sua própria visão de mundo, que é autônoma e válida em si. 

Precisamos construir fluxo. Precisamos promover em sala de aula o encontro de perspectivas, valorizando os diferentes repertórios e os diferentes modos de aprender. Criar espaço para, na relação com o outro, desenvolver o novo, mantendo nossa importância individual. Essa visão fortalece a experiência de sala de aula em diálogo com o conceito de confluência, proposto por Antonio Bispo, pensador e líder quilombola. Para o autor, a confluência permite realizar uma espécie de ajuntamento em que, ao nos misturarmos, gerarmos o novo, mas mantemos o nosso lugar. A metáfora utilizada pelo pensador é a ideia de um rio que se junta a outro, "que conflui, mas permanece em essência".

Essa perspectiva remete a uma compreensão de educação pluriversal na qual respeitamos os diferentes olhares, os diferentes mundos e aprendemos coletivamente.  Trata-se de um mundo de muitos mundos. Precisamos revelar o valor de cada um ouvindo, falando, abrindo espaço para rodar nosso pensamento, rodar nossa visão de mundo e permitir que o encantamento de cada um de nós ocorra. Esse é o grande desafio de uma educação humanista no século XXI.

Para saber mais

ANN NOEL, Lesley. Design Social Change: Take Action, Work toward Equity, and Challenge the Status Quo. Clarkson Potter/Ten Speed, 2023

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997, 2ª ed.

DE LA CADENA, Marisol; ESCOBAR, Arturo. Notes on excess: towards pluriversal design. In: TIRONI, Martín; CHILET, Marcos; URETA MARÍN, Carola; HERMANSEN, Pablo (org.). Design for more-than-human futures: towards post-anthropocentric worlding. London: Routledge, 2023. p. 21-35.

KOLB, Alice Y.; KOLB, David A. The Experiential Educator: Principles and Practices of Experiential Learning. New Hampshire: Experience Based Learning Systems, 2017. 594 p. ISBN 978-0998599908.

NOEL, Lesley‑Ann. Envisioning a pluriversal design education. In: LEITÃO, Renata M.; NOEL, Lesley‑Ann; MURPHY, Laura (orgs.). Pivot 2020: Designing a World of Many Centers. DRS Pluriversal Design SIG Conference, 4 jun. 2020. Disponível em: https://doi.org/10.21606/pluriversal.2020.021. Acesso em: 21 set. 2025.

SANTOS, Antônio Bispo dos. A terra dá, a terra quer; imagens de Santídio Pereira. São Paulo: Ubu Editora / Piseagrama, 2023. 112 p. Universidade Federal de Catalão+2SciELO+2

SIMAS, Luiz Antônio. Bato tambor, logo existo. Entrevista concedida a Revista Trip. São Paulo, 22 ago. 2019. Disponível em: https://revistatrip.uol.com.br/trip/luiz-antonio-simas-bato-tambor-logo-existo. Acesso em: 21 set. 2025.


As opiniões emitidas pelos autores não expressam necessariamente a posição editorial da Matinal.

Gustavo Borba

Gustavo Borba é Doutor em Engenharia de Produção, professor e escritor. Pró-Reitor acadêmico da Unisinos, autor dos livros "A Escola do Futuro", com Marcos Piangers, "Transformando a Sala de Aula", com Melissa Lesnovski, entre outras obras.

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