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Capitu traiu ou não traiu? (1/2)

Encontrei um francês que leu Dom Casmurro ("Dom Casmurro e les yeux de ressac"). Ele me interpelou: Capitu traiu ou não traiu? Disse que não. Procurei meus alfarrábios. Decidi provar que a traição não aconteceu

Capitu traiu ou não traiu? (1/2)
Capitu segundo o GPT

Capitu traiu ou não traiu? Não traiu. Mas devia ter traído. Bentinho era frouxo, covarde, vil, egoísta, agarrado às saias da mãe, machista, ciumento obsessivo e poltrão. Merecia ser corno. Mas Capitu não traiu. Dom Casmurro não é, como afirmam muitos especialistas, um romance sobre uma dúvida sem fim (traiu ou não traiu?) nem sobre um adultério. É um livro sobre o ciúme e sobre a certeza de Bentinho, narrador e marido, de que a mulher o enganou com o seu melhor amigo, Escobar, e com ele teve um filho, Ezequiel. Ao final da história, Bentinho elimina qualquer dúvida, “quis o destino que acabassem juntando-se e enganando-me”.

Não creio que exista questão mais importante a ser resolvida. Bentinho tem certeza. É o leitor que duvida. E se ele se enganou? Capitu, como todo mundo sabe, é apresentada por José Dias, o sujeito que vive encostado na família de Bentinho, puxando o saco de uns e falando mal de outros, como tendo olhos de “cigana oblíqua e dissimulada”. Justina, a outra agregada da família, também desconfia da integridade moral dela e de todo mundo. A história é simples: Bentinho e Capitu amam-se desde criança, mas Dona Glória, mãe do guri, fez uma promessa de torná-lo padre e, mesmo se Deus não está dando a mínima, precisa cumprir o compromisso nem que seja por que José Dias parece dar importância máxima a isso e não a deixa esquecer o prometido.

Desde adolescente Capitu sabia disfarçar as suas emoções. Beijava Bentinho na boca e quando o pai e a mãe apareciam, dissimulava com maestria e muitas palavras, enquanto o guri idiota confessava tudo mesmo sem dar um pio. Essa é o principal indício contra Capitu. Ao final, Bentinho chega a convidar o leitor a reconhecer que “uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca”. Ou seja, Capitu sempre fora uma enganadora, tendo a adúltera resultado da capacidade de fingimento da menina. Bentinho tinha indícios (flagrou Capitu sozinha com Escobar, viu as lágrimas dela quando o amigo morreu afogado) e tinha o corpo do delito: o filho Ezequiel, que era, como dizia a minha avó, o Escobar escarrado, sem tirar nem pôr. Até Capitu reconhecia a semelhança. Mas Bentinho nunca teve a confissão do crime.

Dona Glória enfiou Bentinho no seminário. O covarde não ousou confessar o seu amor para escapar da condenação. Também não foi Capitu, tida por seus detratores como calculista, interesseira e manipuladora, quem o convenceu a ir numa estratégia de resistência passiva. Foi ele que lhe disse: “Se teimarem muito, irei; mas faço de conta que é um colégio qualquer; não tomo ordens”. Foi. Capitu percebia a frouxidão do namorado. Quando ele bancava o valente e garantia que não iria para o seminário, ela, por intuição, jogava-lhe na cara: “Você vai”. Não foi tampouco ela quem urdiu o plano que, finalmente, resgatou Bentinho da vida religiosa. Foi Escobar, amigo feito no seminário, quem lhe sugeriu que Dona Glória mandasse outro, um pobre, vestir a batina no lugar do seu filho mimado. Negócio fechado. Todas as partes ganharam. Agora, a prova.

As opiniões emitidas por colunistas não expressam necessariamente a posição editorial da Matinal.
Juremir Machado da Silva

Juremir Machado da Silva

Jornalista, escritor e professor de Comunicação Social na PUCRS, publica semanalmente a Newsletter do Juremir, exclusiva para assinantes dos planos Completo e Comunidade. Contato: juremir@matinal.org

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