Sarandirú profundo. Estada na casa da vó. Vidal Barbosa, 697.
Já vamos pra lá da metade do ano. É primavera. Um Ipê sacode a cabeleira ao vento bem na frente do portão, deitando um tapetinho amarelo em nossa calçada. Na rua Vidal Barbosa número 697, moramos juntos na casa da vó. Minha mãezinha, o pai e o meu irmão, Lucas. Nessa época, a Vila Elizabeth, a Vila Brasília, a Respeito, a Vila Asa Branca e eu, estávamos ainda estabelecendo nossos limites: físicos, éticos e morais. Minha recordação mais remota da vó é exatamente desse período. Creio que foi quando me dei conta de que ela era a mãe do meu pai. E de que o meu pai não tinha mais pai. Um dia meus primos disseram que ela só vestia preto porque o marido tinha morrido. Achava aquilo estranho e triste. Dormíamos no mesmo quarto, meu irmão e eu numa beliche, a vó, ao lado, na caminha de viúva.
No espaço pequeno ficava um roupeiro branco, grande, de casal, que era da vó e que estávamos terminantemente proibidos de abrir (meu irmão cortava com a tesoura as pontas das colchas); e outro marrom, duas portas, de solteiro, onde dividimos nossas roupas. A máquina de costura, com aquele pedal de acelerador irresistível e a penteadeira da vó. Um espelho emoldurado por lâmpadas incandescentes estilo bolinha. Cadeira estofada. Na bancada, potes e cremes. Gavetas cheias de esmaltes, batons e perfumes. Laquês. As joias da vó. O conjunto de embalagem azul bebê da Memphis: um talco, dois sabonetes e um desodorante fragrância “Alma de Flores”. Pomadas Minancora. Pé por pé, mexia nas maquiagens, acelerava no pedal da máquina e a vó gritava: “Te escapa daí que eu te corto o tico fora!”. Disparava!
No verão, quando ficava a temporada em Arroio do Sal, ou na praia do Pinhal, na esquina do Osso da Baleia, onde as tias e avós maternos tinham comércio, recebia da vó uma sacola de plástico, dessas de supermercado, até a boca de cédulas de 1 cruzeiro. Aquelas verdinhas, com a efígie simbólica da República na frente e no verso o antigo prédio da Caixa de Conversão e de Estabilização; também notas de 5 cruzeiros. O busto de D. Pedro I no anverso em tons de verde e o reverso roxo, estampada a Praça XV de Novembro, no Rio de Janeiro. Mais uma funda feita com forquilha de galho de goiabeira. Duas borrachas de soro (tubo de látex que se comprava nas Pharmácias) já presas uma em cada forquilha, ambas atadas, na outra extremidade, em uma tira de couro feita de cinto velho. Pronto. O mundo era meu.
“Tu sabes que eu acordei de madrugada esses dias e tinha duas sombras, anssim, paradas do lado da minha cama”. A vó aproveita o solzinho e se debruça na janela, a cabeça toda branquinha apoiada nos cotovelos. E segue. “Por Deus Nosso Senhor, uma sombra baixinha assim, como tu, e a outra mais alta, mais possante, sabe como é?”. Sim. E aí, vó, o que queriam com a senhora? Senta na cadeira de embalar, pega o pote de rapadura e oferece. “Queres adoçar o bico?”. Agradeço. “Disseram que em outubro eles vêm me levar”. Eles quem? Pra onde, vó? “E eu sei lá, rapaiz, parece bobo”. Só não disseram outubro de que ano. Estamos no lucro. Ela dá risada e enfia uma rapadura inteira na boca. Moramos cerca de seis anos na casa da vó, de 1986 até meados de 1992, por aí. E quase que não saímos juntos de lá.
A vó usava medicamentos para ajudar o sangue a circular mais rápido. Ministrava a ela mesma, cumprindo todo um ritual de cautela, precisamente meio comprimido, duas vezes por semana. Em uma das ocasiões, quebrada a rotina, esqueceu o frasco de remédios em cima da pia da cozinha. E se havia risco de acidente, ferimento grave ou perigo de morte, mesmo com os para-te-quieto da mãe, certo que lá estaria o Lucas, meu irmão. Ingeriu logo cinco. O pai e eu não estávamos. Chegamos em seguida. Todos choravam. As caras sem expressão. Mil olhos de piedade pousavam sobre mim. Fui pra debaixo da cama. Minha mãezinha prometeu jamais bater em filho se meu irmão se salvasse. Dizem que o médico chegou a cobrir o corpinho com um lençol. Uma enfermeira viu-o mexer o pé e retomou com os procedimentos. Ficou na UTI alguns dias. Salvou-se e nunca mais apanhamos. Não da mãe.
No campo político, vivia-se o auge dos partidos associados aos trabalhadores. A primeira eleição para prefeito após a redemocratização foi vencida pelo PDT, com a eleição de Alceu Collares. Na sequência, em 1988, assumia Olívio Dutra, à frente da coalizão de esquerda conhecida como Frente Popular. Durante sua gestão, foi instituído o Orçamento Participativo (OP), política que permitia aos cidadãos decidir as prioridades de investimento público por meio de assembleias regionais. Foi uma forma de responder às demandas por maior participação popular, principalmente nos bairros periféricos, como Sarandi. O sucesso do OP e a aceitação popular permitiram que a Frente Popular se reelegesse em 1992, com Tarso Genro; e em 1996, quando Raul Pont foi eleito prefeito, mantendo a coalizão no poder.
As flores do Ipê Amarelo desabrocharam, seus galhos ficaram secos algumas vezes e já não morávamos mais na casa da vó. Tão efêmero o nosso convívio, porém, tão rico de memórias. Olhando agora, com a lupa do tempo, passou tão rápido. “A vida é assim, meu filho, um suspiro curto”. Mudamos pra avenida Faria Lobato. Entre a Rodrigues da Costa e a 21 de Abril. A casa agora era de madeira e tinha um quartinho nos fundos. Fazia de bicicleta, toda a manhã, atalhando pelo beco-das-sete-facadas, o caminho até o Liberato. Só depois fui transferido para o Cristóvão Colombo (o Polivalente), mais próximo. A vó estava então com sessenta e poucos anos. Do subsolo do fundo do poço do egoísmo da minha adolescência, eu me pergunto: onde eu estava nos dez anos seguintes, que não lembro de visitar a vó?
E eu mesmo me respondo: Dançando breaking aos domingos, no Clube Comercial Sarandi. Lambada com as primas, nos aniversários de família. Usando ombreiras em reuniões dançantes. Bebendo vinho quente com os punks e góticos da Oswaldo Aranha. Acometido pela febre terçã do Axé Music. Ouvindo Engenheiros do Hawaii. Comemorando o Tetra. Chorando a morte do Senna. De cara pintada, impichando o Collor. Ligando para o 138. Contando moedas pra (nunca) fechar as contas, primeiro em Cruzeiro. Depois em Cruzado. Cruzado Novo. Cruzeiro, de novo. Cruzeiro Real. Então, em URV e, finalmente, em Real. Jogando futebol no S.E.R Caxias. Nas festas do Sítio do Beto, nos bailes do Bar Opinião. Promovendo a vó à bisavó.
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