+ Texto da série 'O Diário Mongol'
Este texto faz parte da série de artigos que o colaborador Alfredo Fedrizzi está produzindo para a revista Parêntese. Confira os demais textos:
Há uma tensão fundamental que define nossa era: entre o impulso humano de explorar o desconhecido e a crescente homogeneização do mundo moderno. Como observou Mário de Andrade, alguns de nós somos “feitos para viajar”, mas em uma época em que o mundo parece ter encolhido até caber na tela do nosso celular, encontrar territórios verdadeiramente transformadores tornou-se um desafio existencial. A Mongólia representa uma dessas raras oportunidades – um lugar onde ainda é possível se perder de verdade, tanto geograficamente quanto intelectualmente.
Fernando Pessoa capturou uma verdade profunda quando escreveu que “as viagens são os viajantes. O que vemos não é o que vemos, senão o que somos.” Esta observação ressoa particularmente quando aplicada à Mongólia, um país que funciona como um espelho para nossas próprias questões sobre democracia, identidade e resistência cultural. Minha jornada para lá começou como uma curiosidade acadêmica, mas evoluiu para algo mais profundo – uma investigação empírica sobre como sociedades navegam entre forças históricas contraditórias.
A fascinação inicial surgiu de uma pergunta aparentemente simples que se revelou extraordinariamente complexa: como um país pode manter sua soberania democrática quando está literalmente espremido entre duas das maiores autocracias do mundo? A Mongólia, com seus 3,5 milhões de habitantes espalhados por um território do tamanho do Amazonas, representa um dos experimentos geopolíticos mais intrigantes de nossa época. É um laboratório vivo de questões fundamentais sobre democracia, identidade nacional e a capacidade humana de equilibrar tradição com modernidade.

O Legado Paradoxal de Gengis Khan
Gengis Khan, que viveu entre 1162 e 1227, foi muito mais que o maior conquistador militar da história – ele foi, em muitos aspectos, o primeiro globalista. Suas conquistas, que se estenderam da China à Europa, criaram a maior rede comercial e cultural contígua que o mundo já havia visto. Após o colapso do Império Mongol, muito território foi perdido. Mas há uma ironia profunda aqui: o homem que conectou civilizações através da força deixou como legado um país que hoje deve sua sobrevivência precisamente à sua capacidade de equilibrar influências externas sem sucumbir a nenhuma delas.
Esta tensão entre herança imperial e realidade democrática moderna me intrigava não apenas como observador, mas como alguém que cresceu testemunhando as transformações geopolíticas do final do século XX. Durante meu mestrado em Antropologia na Universidade de Lisboa – uma escolha que reflete minha própria jornada de brasileiro tentando compreender o mundo através de lentes acadêmicas europeias – encontrei um estudo sobre as relações trabalhistas tensas entre mongóis e empresas chinesas. O trabalho revelava conflitos que iam muito além de questões econômicas, tocando em questões fundamentais de dignidade nacional e autonomia cultural.

A Democracia em Território Improvável
Foi então que decidi que precisava ver a Mongólia com meus próprios olhos. Não como turista em busca de experiências exóticas – há muitos lugares no mundo onde se pode chegar “antes do McDonald’s” –, mas como estudioso interessado em compreender como sociedades navegam entre pressões externas e coesão interna. A viagem se tornou uma investigação empírica sobre questões que têm implicações muito além das fronteiras mongóis.
A jornada de Lisboa a Ulaan Baatar – passando por Frankfurt, essa catedral da eficiência alemã que serve como portal para destinos improváveis – ofereceu tempo para reflexão sobre o que realmente significa viajar em nossa era de globalização acelerada. Ulaan Baatar, descobri, é considerada a capital mais fria do mundo, com temperaturas que podem chegar a 30 graus negativos no inverno. Para alguém acostumado com o clima tropical do Brasil, isso representava mais que um desafio físico – era uma metáfora para o choque cultural que estava por vir.
O que talvez seja mais fascinante sobre a Mongólia é como ela conseguiu fazer uma transição democrática bem-sucedida em 1990 – algo que muitas ex-repúblicas soviéticas não conseguiram alcançar. A revolução democrática mongol foi notavelmente pacífica, resultando em uma nova constituição em 1992 e na criação de um sistema multipartidário funcional. Isso levanta questões importantes sobre as condições que permitem transições democráticas bem-sucedidas.
Uma hipótese que considero é que a tradição nômade mongol, com sua ênfase na adaptabilidade e movimento, pode ter criado uma mentalidade cultural mais receptiva à mudança política. Sociedades nômades, por necessidade, desenvolvem instituições flexíveis e capacidade de resposta rápida a mudanças ambientais. Essas mesmas qualidades podem ter facilitado a transição de um sistema político para outro.

A Sabedoria da Sobrevivência Cultural
Bhazanjargal, um empreendedor e artista mongol com quem conversei, ofereceu uma perspectiva reveladora sobre essa questão: “Nossos grandes antepassados fizeram muitas coisas para nossa geração, para nossos filhos, para vivermos nessa terra como um país independente, mesmo entre dois grandes países. Eles dedicaram suas vidas, eram tão poderosos, que nos tornamos uma geração de grandes pessoas.”
Sua explicação, embora se referisse claramente a Gengis Khan e ao legado do Império Mongol, tocava em algo mais profundo sobre como sociedades constroem narrativas de resistência e continuidade. Ele continuou: “Nos antigos tempos, até a China e a Rússia não eram tão fortes. Foram divididos em muitas tribos pequenas, com conflitos internos. Mas com a ajuda de nossos antepassados, eles puderam ser fortes. A Mongólia fez muitas coisas boas para ambos estes países, e eles nos respeitam por isso.”
Esta interpretação da história – onde a Mongólia é vista não apenas como conquistadora, mas como unificadora que contribuiu para a formação de seus vizinhos poderosos – revela uma sofisticação geopolítica notável. É uma narrativa que permite orgulho nacional sem antagonismo desnecessário, reconhecendo interdependência histórica enquanto mantém dignidade cultural.

O Algodão Entre Cristais
Outra metáfora que ouvi frequentemente na Mongólia é particularmente reveladora: o país funciona como “algodão entre cristais” – se um vizinho anexar a Mongólia, se incompatibilizaria com o outro. Esta imagem captura perfeitamente a realidade geopolítica mongol: sua independência não é apenas uma questão de autodeterminação, mas uma necessidade estrutural para a estabilidade regional. E, como observaram vários mongóis, “haja diplomacia para transitar nesse ambiente.”
Esta necessidade de navegação diplomática constante criou uma cultura política notavelmente sofisticada. Os mongóis desenvolveram uma capacidade quase instintiva de equilibrar influências contraditórias, mantendo relações funcionais com ambos os vizinhos sem se tornar satélite de nenhum. É uma habilidade que muitas democracias estabelecidas poderiam estudar com proveito.
Lições para um Mundo Fragmentado
O que a Mongólia oferece ao mundo de hoje não são apenas paisagens espetaculares ou experiências culturais únicas, mas um modelo alternativo de como sociedades podem navegar entre tradição e modernidade. Em uma época em que muitos países lutam com polarização política, perda de identidade cultural e pressões geopolíticas, a Mongólia demonstra que é possível manter coesão social e estabilidade democrática mesmo em circunstâncias desafiadoras.
A experiência mongol sugere que a chave para a resiliência democrática pode não estar apenas em instituições formais, mas na capacidade cultural de adaptação e na manutenção de conexões com tradições que fornecem estabilidade emocional e identidade coletiva. É uma lição particularmente relevante para democracias estabelecidas que enfrentam crises de legitimidade e fragmentação social.
Como Pessoa observou, as viagens revelam tanto sobre o viajante quanto sobre o destino. Minha jornada à Mongólia revelou não apenas um país fascinante, mas também questões fundamentais sobre como sociedades podem prosperar em um mundo de pressões contraditórias. Em uma era de crescente polarização global, a Mongólia oferece um exemplo raro de como a flexibilidade cultural, combinada com orgulho nacional e sofisticação diplomática, pode criar espaços de estabilidade e dignidade mesmo nas circunstâncias mais desafiadoras.
Talvez a maior lição da Mongólia seja que a sobrevivência cultural não requer isolamento, mas sim a capacidade de se adaptar sem perder a essência. É uma lição que ressoa muito além das estepes asiáticas, oferecendo insights valiosos para qualquer sociedade que busca manter sua identidade em um mundo em constante mudança.
